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Orcam My eye e as Falsas Visões sobre a Cegueira

Prefeituras e governos estaduais de diversas localidades brasileiras estão empregando somas consideráveis na aquisição   dos óculos de leitura Orcam my eye, dispositivo criado por uma empresa israelita e comercializado no Brasi pela franquia “Mais Autonomia”.

A aquisição mais recente se deu em Porto Alegre, onde a Secretaria de Educação do município investiu cerca de um milhão de reais para a compra dos óculos para escolas do ensino fundamental e médio. A compra gerou  reações  críticas da parte de pessoas cegas, sobretudo educadores, que alegam a necessidade de aquisição de tecnologias bem mais básicas para a educação especial, a exemplo de linhas braille, dispositivos com leitores de tela, e até equipamentos de escrita manual, como regletes e punções.

Mas o que e o orcam my eye, e o que ele faz? O equipamento é composto por uma minicâmera, acoplada a um óculos, que fica no rosto do usuário. Um ocr, dentro da câmera, fotografa textos impressos para leitura, identifica cores, rostos e cédulas e códigos de barra. Tudo é informado ao usuário por uma voz sintética, e todas as  operações se utilizam dessa leitura audível. Cada dispositivo é comercializado pelo valor de 14 mil e 400 reais, a preços de hoje.

O orcam my eye é apenas mais uma das múltiplas tecnologias assistivas voltadas para as pessoas cegas. Entretanto, as visões que orbitam em torno do equipamento, e que são difundidas em matérias jornalísticas, reportagens de tv e conteúdos diversos, vendem ilusões sobre o que a câmera pode fazer por uma pessoa cega. É comum ouvirmos afirmações do tipo: “Agora os cegos podem voltar a enxergar”, ou, “uma criança cega não precisa mais ler braille”. Ou ainda, “agora posso ver o rosto da minha filha”…

O entusiasmo é ingênuo. Em geral, pessoas cegas não querem enxergar. Adaptadas à sua condição, lutam por acessibilidade, respeito e dignidade, e querem ser vistas e tidas como cidadãs.    

Privar uma criança cega da leitura e escrita braille, é como negar às crianças que enxergam, o acesso à leitura e a escrita manuscrita, ferramenta e legado fundamental do progresso da cultura humana.

Governos estaduais e prefeituras estão errados quando dispõem verbas importantes para aquisição do equipamento? O erro maior radica no fato de não se escutar os mais interessados, ou seja, os educadores, os usuários, as políticas de educação especial. O orcam My eye   não pode jamais ser considerado um item de primeira necessidade no chamado quite básico de educação de crianças e adolescentes cegos. Os governos e prefeituras precisam antes suprir escolas e salas de recursos com materiais de escrita manual, linhas braille, dispositivos de cálculo e computadores e tablets com leitores de tela. Feita esta lição, e, ouvidos os educadores, pode-se sim, inserir o orcam my eye como recurso complementar, se houver verba excedente, e mais que isso, se houver políticas de utilização e manutenção do dispositivo, que, por sua natureza, é recomendado para uso individual.

Para educadores e usuários com deficiência visual das redes públicas de ensino, o que está sendo vendido como panaceia para as crianças e jovens cegos pode representar mais um óbice para a educação especial, o aprendizado do braille, tão indispensável ao processo ensino/aprendizagem desse público. Pesquisas dão conta de que adolescentes e jovens cegos têm cada vez menor domínio da escrita da língua, assim como da leitura em braille. Um alerta deve ser feito aos gestores públicos: Num quite básico de tecnologias assistivas, o orcam my eye está longe de ser um equipamento indispensável, visto que suas funcionalidades já encontram realização muitas vezes de custo zero, através de aplicativos como o seing ai,

 Aplicativo gratuito da Microsoft, que realiza rotinas similares em Smar fones                  e tablets, somente para citar um exemplo bem-sucedido de tecnologia assistiva.

“Nada sobre nós sem nós”: Essa máxima, largamente difundida em discursos, lançamentos de campanhas de acessibilidade, eventos de pessoas com deficiência, está longe de ser exercitada nas redes públicas de educação do país, onde educadores, usuários e famílias de pessoas com deficiência, em geral  não são ouvidas em decisões  que certamente terão impactos de relevância ou não, no cotidiano educacional desses coletivos.

(este poste foi publicado originalmente em http://www.cnclp.com.br)

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Quando o Mal é Absoluto (2)

Escrevi uma crônica com esse mesmo título, há alguns anos. Desde então, percebi que já poderia ter escrito centenas delas, com esse mesmo título. Assisti às engrenagens do mal, na sua faina de se superar; vi, no meu país, a força das veias da maldade, ganhando espaço e vigor.

A mídia comercial decidiu que os nomes do mal não serão mais publicizados. O mal não terá senão, as letras da sua sílaba fatídica. O mal não terá seus rostos espostos, nem será conhecida sua identidade.

O mal celebrará sozinho o repasto macabro que engendra, nas creches, nas escolas, nos cinemas, nas igrejas, nos templos.

E nós? entrincheirados dentro da nossa tristeza profunda, faremos silêncio por entre as lágrimas; faremos precesduras de desespero; velaremos os pequenos corpos vitimados.

Somos reféns do que o mal prepara, na sua cozinha maldita. “Que Deus nos proteja”, diria minha mãe. Peso suas palavras, procuro seu vigor, mas estou tão triste”… Que Deus nos proteja, digo eu, tentando aplacar todas as fibras dessa dor coletiva que vibra, em todos os poros da sociedade.

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Falta de Notícia Ou Falta de Vergonha?

Sempre soubemos que o jornalismo da rede Globo, seja por imposição da empresa, seja por vocação dos profissionais, está plenamente sintonizado com os interesses do capital especulativo e neoliberal. Na atual conjuntura, âncoras de tv vêm travando uma verdadeira queda de braço com declarações do presidente Lula, que por sua vez, vem fazendo duras críticas a temas como a independência do Banco Central e as altas taxas de juros impostas ao país.

O presidente, cada vez que pode, traz à baila os dois temas. Os jornalistas, imediatamente, com suas tesouras  de recortar os acontecimentos, passam a explorar essas falas, dentro daquela moldura do bem e do mal, sob a máxima: O mercado está certo e o presidente não ajuda, com suas falas.

Os comentários não têm qualquer substância, nenhum aprofundamento. Apenas ratificam os interesses da mídia e pavimentam o velho terreno da crítica ao governo de esquerda eleito.

Mas cabe uma pergunta: Por que o presidente Lula tem falado tanto sobre esses dois temas? Creio que com essa insistência, Lula passa um recado importante à rede Globo: Lula insiste para dizer que como presidente da república, terá liberdade de pensamento e de opinião. Mais que isso: não deixará de enfrentar os duros temas que assombram o país e que impedem o crescimento da sua economia.

Mas essa guerra de discursos tem um propósito mais relevante: Lula diz ao país que um governo social democrata vai sim enfrentar o tema das taxas de juros e vai balizar até onde pode ir a independência do Banco Central. Um governo social democrata vai governar sobretudo para os mais pobres, os mais vulneráveis, chamando para esta missão, o empresariado, o parlamento, o “mercado” brasileiro especulativo, poucos milionários situados na Faria Lima, que combinam o sobe e desce das bolsas, com ameaças e recados que a mídia não apenas divulga como defende religiosamente.

Falta de notícia ou falta de vergonha? A mídia, e mais particularmente a rede Globo, tema desse post, ao longo da sua trajetória de mais de 50 anos, vem traçando sua linha de defesa do mercado, do jornalismo dedicado à voz das autoridades, divorciando-se irremediavelmente dos interesses da sociedade, dá defesa dos mais pobres e mais vulneráveis. Essa linha reta, gerando uma pauta monotemática de crítica aos governos de esquerda, já engendrou, somente para falarmos de episódios recentes, o golpe 2013/2016, e, o nefasto período Bolsonaro, que empurrou o país para a barbárie, o terrorismo e a colocação do Brasil , de novo, no mapa da fome.

Não se trata, pois, de falta de notícia. Trata-se sim, do enquadramento em uma notícia única, num esforço para recolocar o país nos trilhos do mercado e do neoliberalismo, no desejo invocado todos os dias, por uma terceira via, capaz de harmonizar-se com o diapasão midiático: política de juros altos, independência do BC, e tantos outros projetos defendidos por esta agenda infame. 

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Até Quando A Imprensa vai Editar Bolsonaro?

Nós que elegemos o presidente Lula, estamos divididos por dois sentimentos antagônicos: Um sentimento de celebração e de vitória, outro de preocupação e vergonha. É como se vivêssemos em duas realidades. Numa em que sorrimos e sonhamos com o futuro bom que se avizinha, outra em que há poluição, paralisia e ódio sendo destilado. Mas o que mais me inquieta é assistir à imprensa televisiva agarrada ao discurso mal_ dito do presidente Bolsonaro, tentando editar suas melhores partes, tentando encontrar naquela ffala canhestra de dois minutos, frases que ele não disse, intenções que ele não teve, reconhecimentos que ele não fez. Vendo esse comportamento midiático, reconheço que ao longo desses quatro anos, a imprensa sempre esteve agarrada à uma linha editorial de minimização dos danos e dos ditos nefastos do presidente Bolsonaro. Não, mídia brasileira. Bolsonaro, o derrotado, apresentou-se ao seu séquito como herói; destilou seu discurso de ódio, prosseguiu na sua narrativa do nós contra eles. Deixará o planalto pporque é de lei, porque o estado brasileiro assim determina. Indago se fossem Dilma ou Lula, a fazerem essa fala ao país. O que a mídia estaria dizendo?

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A Tragédia como Notícia e a Desfiguração da ?Realidade

Enquanto faço leituras de preparação das minhas aulas da semana, repercute em mim, a tragédia que tomou conta do noticiário televisivo paraibano: O suposto assassinato de uma criança de 1 ano e três meses, provavelmente pela mãe, através de mais um cruel episódio de violência doméstica.

Tento refletir sobre o caso, e mais particularmente sobre a sua cobertura, no âmago mesmo da profissão jornalística. A formação dos profissionais de jornalismo esteve e ainda vive atravessada por dicotomias importantes: Teoria versus prática; formação universitária versus dom e vocação; jornalismo informativo versus jornalismo sensacionalista; notícia informativa versus sensacionalismo são algumas dessas dicotomias presentes na história da profissão.

Na atualidade, é certo que há um predomínio do jornalismo informativo e de serviços, e, ao lado deste, um gosto pelo sensacionalismo em muitos veículos de mídia. Mas o que isso tem a ver com o acontecimento trágico da semana? O jornalismo errou na sua cobertura?

Do ponto de vista da atual tendência para uma cobertura informativa dos fatos, o jornalismo certamente fez o que estava determinado fazer. Trouxe o ocorrido com seu lead, ouviu autoridades, escutou as vozes da comunidade, apresentou o quadro fornecido pelos médicos sobre a morte da criança. Deu visibilidade a um fenômeno sinistro, muitas vezes perpetrado dentro das casas, sem que se tome conhecimento do terrível desfalque que se faz à infância, ao direito de viver, com dignidade, acesso aos bens e serviços, e, mais que tudo, acesso ao amor e à proteção familiar.

Ao escutar a cobertura, entretanto, percebi que algo estava a escapar-se irremediavelmente das notícias. Pensei que a imagem daquela mãe era como que desfigurada por uma sombra. Na tevê, tudo estava certo. A técnica, a passagem para o repórter, os depoimentos, o breve suspiro dos âncoras dos telejornais. As atualizações davam conta do enclausuramento da mãe, no cemitério, a cobertura dava visibilidade à revolta dos moradores da comunidade. Por que então persistia em mim essa zona de sombra?

Segundo o que penso, a sombra, a falta irremediável   está no jornalismo informativo como tal. O jornalismo informativo, essa fábrica de moer os acontecimentos, e de extrair dos mesmos, a sua face mais objetiva, mais superficial, aquela face particular que possa entesourar o fato na coleção dos outros fatos, da violência doméstica, do tráfico de drogas nas periferias, das ocorrências policiais de toda ordem. O que se escapa ao jornalismo informativo, é o profundo mal-estar que envolve as relações sociais, e que se perpetua ad infinitum, na história da sociedade, nos seus processos de distribuição das riquezas, na ausência do estado em políticas de acesso à educação, à saúde, proteção à infância, em periferias que distam de nós em míseras meias horas, se tanto, mas acham-se encobertas por uma zona profunda de outros distanciamentos.

Fosse o jornalismo informativo revolver na moenda do noticiário, os restos desprezados desses acontecimentos, encontraria ali matéria sombria, repleta de séculos e séculos de ausências inarticuladas, naturalizadas, cheia das sílabas ininteligíveis do desespero, que não cabem na moldura do lead, nas suas seis perguntas objetivas e previsíveis.

O enclausuramento da mãe é o ponto final da notícia, para o jornalismo informativo. Não se falará do abandono paterno, nada se dirá dessa mulher terrível, na sua vestimenta de presidiária, ocultando no corpo e na alma, todo um solo feito das misérias   que foram tecendo, vestindo e cimentando o seu ser de agora, esse ser que não pôde proteger da morte a criança pequena.

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O Mundo é Um Moinho

Sim. Cartola tinha razão. O mundo é esse triturador de coisas. Tal como ocorre no cosmos. No cosmos, estrelas se forjam e se destroem, assim como planetas, asteroides, quazares, e tudo o mais que não tem nome ainda. Só que no cosmos tudo acontece em câmera lenta, milhares, quiçá, milhões de anos, para uma estrela estertorar e morrer. No nosso mundo vivo, finito, as coisas destroem-se num pequeno lapso de tempo. Esbagaçamos uvas entre os dentes, derretemos chocolate por entre língua e céu da boca, onde a única possibilidade de estrela é a saliva corrosiva. Esbagaçamos amizades na frouxidão da desatenção fria, destruímos memórias queridas, numa espécie de boca do tempo escancarada e cheia de falhas dentárias. Cante alguma coisa; diga algo; você sequer verá a última sílaba do seu dito, repousada entre os lábios e a brisa, feito mariposa morta. Tá bom, então escreva. Ninguém vai ler você. Seu perfil cheio de likes, o imperativo da hora é dar likes. Olhe a sua postagem esmerada: Zero coments. Quando você partir, seus conhecidos olharão para o fogo da sua cremação, e quase com alívio, reproduzirão o repertório das coisas vividas com você. Pela última vez, acenderão o fogo da atenção para o que você foi, e sairão da casa de velórios aliviados, loucos para esquecer o tema da morte. O mundo há de sorver para o buraco negro do esquecimento, essa minha fala, essas minhas falhas, essas minhas frases toscas, regadas a tédio, nesse domingo calorento e silencioso. O mundo destruiu quase todos os acentos dessa minha escrita tola.

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“Meio Estreito”, Ou Um novo Jeito de imprensar e Sacudir Leitores

         “Meio Estreito” chegou, e com ele, a escrita de sabre de Roberto Menezes,em contos curtos, vibrantes, inquietantes mesmo. Eu falo de “escrita de sabre”, mas, em algumas estórias, o escritor nos serve mesmo é vidro moído, em frases telegráficas e desconcertantes.  

            O livro traz novidades. Nas outras obras de Roberto Menezes, somos impactados pela mesma escrita agônica, mas esta espalha-se pelas páginas, laboriosa, prolixa na forja do caos, do desespero permanente. Aqui, conforme o título já anuncia, a estrutura narrativa alinha-se, vem para o centro da página, curta, precisa, desdobrando-se feito serpente matizada, pronta para a largada, o bote, a partida, o breve repouso dos corpos abandonados no sono.

            O primeiro conto traz um aviso implícito: Escrever pouco e deixar que o leitor faça o resto. E como num desfile, chega o vendedor de salgados, indo e vindo nas quilhas narrativas de Roberto Menezes. E vem a moradora do brejo, mariposa presa às idas e vindas do seu ladrão, o desassossego tisnando suas unhas de angústia e pólen de rosas.

            E eis que nós, os leitores, vamos sendo aprisionados nos fios dessa teia, sendo encurralados e empurrados para o centro dessa usina criativa, ali, onde em frases telegráficas, percutem o caos, a agonia, o vibrato perpétuo desse cosmos particular, encolhendo e distendendo  o mundo, a criar colisões impossíveis de partículas, cheiros e sons de toda ordem.

            E lá vamos nós, pobres leitores, colados à litania dessas vozes, entrando em salas obscuras de cheiros duvidosos, desaguando em ruas e praças, sendo sacudidos e revirados, para cima, para baixo, sem aviso nem tempo para respirar.

            E rastejamos junto com as formigas, e assistimos nas lives delas, e em tempo paralelo, o trabalho da morte num pedaço de rua todo sujo do lanche que não foi entregue.  E vemos a “linha”, essa palavra tão pequena, fazendo o trabalho bruto da reflexão, criando como que o compasso, a métrica de uma vida falhada.

            E eis-nos chegados ao último conto, narrativa da curiosa saga do herói. A sequidão, o pagamento da cidade, a luta, o ir e vir, a pregação da mãe, a menina sorridente a apontar o lugar da água, a menina a impeli-lo ao fundo das coisas. Escrever muito, em parágrafos curtos. Fremir o pulso do mundo na sonoridade obsessiva, cinzelada no meio estreito da linha.

            Roberto Menezes é paraibano, vive em João Pessoa, ama Tibiri, mas sua escrita cria e estilhaça universos paralelos, tantos quanto as partículas conhecidas no mundo quântico. A escrita de Roberto Menezes tem essa miscelânea de sabores que faz a gente pensar em vidro moído, servido cru.

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Presentes do Coração Nunca se Estragam

Você já leu um livro que não tenha nenhuma linha ruim, desinteressante? Estou lendo agora, um livro lindo, cheio de ternura, de improbabilidades, de desespero e esperança, tudo escrito de maneira primorosa, tão primorosa que não se perde uma linha sequer.

Tudo começou dia desses, quando minha neta, Gabriela, de dezessete anos, disse que queria que eu lesse um livro que ela tinha acabado de ler. Fiquei toda contente, e mais ainda, quando ela chegou aqui em casa, toda cheirosa da sua colônia rosa pimenta, com o livro nas mãos.

Comecei a ler de vagar, “os Cem Anos de Leni e Margot, entre uma tarefa e outra da academia. A estória de Leni e Margot se passa num hospital e as duas personagens estão em estágios ruins de doenças incuráveis. Leni tem dezessete anos, Margot tem 83. É uma estória séria, dramática, mas está tão bem escrita, os personagens são tão vivos, que muitas vezes o drama passa ao largo e somos arrebatados por essa trama envolvente e bonita.

Encontrei no livro tudo o que eu amo: Uma boa estória, muito bem escrita, cenas de amor e ternura; encontro de gerações, velhice e juventude entrelaçadas, discussão séria sobre religião, de um jeito pitoresco, as vezes até engraçado. E como se não bastasse, encontrei ainda mais coisas que amo. Encontrei um astrônomo maravilhado com as estrelas,engendrado numa maravilhosa singularidade, um personagem cheio de graça.

“Os Cem Anos de Leni e Margot” é uma celebração à amizade. Estar lendo esse romance terno me faz sorrir a cada hora, sabendo que Gabi também passou seus olhos vivos por essas páginas, provavelmente chorou nas mesmas passagens em que choro eu, agora. Penso na minha menina, crescida agora, e me trazendo livros para ler. Livros realmente sérios. Meu coração se enche de amor, de ternura e de alegria,e me deixo misturar nesse tempo em que mais do que avó e neta, eu e Gabi somos leitoras ávidas do amor e da amizade.

Os Cem Anos de Lenni e Margot
Romance de estreia de Marianne Cronin. Uma história comovente sobre a amizade mais pura, que ultrapassa gerações e nos mostra que, mesmo quando o lado mais escuro da vida parece prevalecer continua a existir luz.”

Confira em: https://www.e-cultura.pt/artigo/28518#:~:text=Extraordinariamente%20espirituoso%20e%20cheio%20de,em%20que%20mais%20precisamos%20deles.

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Erramos: Atualizando nosso Post de ontemPor um Jornalismo Digno e Livre de Clichês

OOntem nós erramos. Não foi o jornalista Valdo Cruz quem disse que o discurso do presidente Bolsonaro nas Nações Unidas seria em braille. Na verdade ele apenas reproduziu uma afirmação do próprio presidente, ao falar ontem à imprensa, já em Nova Iorque.

O que temos pois, é uma piada infame do presidente, ecoada em toda a mídia, e uma sensação de que nesses dias vividos, dificilmente as pessoas com deficiência terão o respeito que se exige do mandatário da nação, tampouco um país cuja vontade política seja a de construir um projeto global de cidadania e inclusão.

Na expectativa do que o presidente dirá às Nações Unidas, digo que fazer discursos em braille é uma tarefa para poucos. Fazer discursos em braille exige pessoas fortes, capazes de tocar as palavras e sentir sua força e profundidade; escrever discursos em braille exige que se pese cada letra, cada palavra na ponta dos dedos, exige disciplina, força de vontade e amor pelo conhecimento.

Escrever discursos em braille é como abrir sulcos na terra, para plantar e depois colher o alimento que advém da ciência, da cultura, da literatura.

Com meu pedido de desculpas ao jornalista, e já tendo assistido ao discurso do presidente na AssembleíaGeral das Nações Unidas, digo que a sua fala, decididamente, não pode ser escrita em braille. O país que hoje Bolsonaro apresentou ao mundo, é o seu país editado, onde a economia vai bem, o desemprego está sendo afastado, um país livre de corrupção e defensor da família e da propriedade. Um país onde as populações indígenas estão em liberdade.

Não, a narrativa desse país não pode ter sido editada em braille.

“o discurso do presidente Bolsonaro às Nações

Unidas amanhã, será em braille”. A afirmação foi feita hoje pelo jornalista Valdo Cruz, no programa Estúdio I da #GloboNews. E, para complementar sua frase entoada com toda pompa, explicou que o presidente falará para os negacionistas, os que não querem enxergar a realidade do país.

Falar ao vivo é sempre um risco. O jornalista, diante das câmeras,nem sempre se autovigia, e, em geral, recorre às frases feitas e aos clichês, para enfeitar suas narrativas. Se o jornalista queria impressionar sua audiência,ou mesmo fazer gracejos para o riso frouxo da Maria Beltrão, foi de fato muito infeliz no seu comentário.

Estamos às vésperas do Dia Nacional de Luta da pessoa com deficiência, comemorado em 21 de setembro. Todos os dias, o jornalismo brasileiro, os políticos, e muitas das figuras públicas influentes vão buscar a metáfora da cegueira para enriquecer os seus discursos críticos à política brasileira, aos desmandos do presidente da república, à ideologia negacionista que ameaça sobretudo as políticas ambientais, de saúde e de educação.

Todos os dias, postada diante da tv, uma pessoa cega fica indignada, por ver sua condição sensorial, no nível das narrativas, misturada com tantas situações nefastas vividas no país, pelas populações indígenas, o povo negro, as pessoas com deficiência.

A lista desses desmandos, sobretudo contra as pessoas com deficiência tem aumentado. O Ministro da Educação, recentemente, disse que crianças com deficiência atrapalham as crianças sem deficiência em escolas regulares.

O governo tampouco considera a inclusão na escola regular como uma política fundamental, o que faz com que a educação mercantil ganhe força no seu intuito de rejeitar crianças com deficiência em suas escolas.

O jornalismo nem sempre é nosso aliado nessa luta, e, quando apela a esses clichês que associa cegueira aos significados rasos do dicionário e da cultura preconceituosa, fortalece uma visão nosciva e desvantajosa sobre nossos coletivos.

Sei que as pessoas podem objetar: “Aqui não se está falando da cegueira ocular, mas antes, da ignorância, da estupidez”. Então não somos também, pessoas cegas, todos os dias, comparadas a ignorantes, estúpidas ?

A cegueira é a palavra que define a minha condição de deficiência. Sou uma pessoa cega, e ponto. As minhas limitações maiores não advêm da minha cegueira, mas antes, de um entorno social desfavorável, onde as políticas de acessibilidade, de acesso pleno à informação e à cultura, de acesso às tecnologias, estão completamente ausentes de programas de governo.

Hoje Valdo Cruz extrapolou. Tocou num símbolo fundamental para nossa emancipação, nossa cidadania: A escrita braille, criada na terceira década do século XIX, por um jovem francês, cego, e que estava cansado de se ver, e aos seus próprios companheiros, como cidadãos de segunda classe.

Não, Valdo Cruz. O discurso de Bolsonaro não será em braille, esses pontos em relevo que trazem uma mensagem de emancipação, de liberdade, de conhecimento. Amanhã, quando estiver comentando sobre o discurso do presidente nas Nações Unidas, encontre uma definição exata para a sua narrativa. Faça com que seus comentários respirem um jornalismo mais digno, com menos clichês, um jornalismo capaz de fazer a opinião pública pensar melhor sobre essa catástrofe que estamos vivendo, e que, não me canso de dizer, a imprensa brasileira, com seus clichês, sua opinião de superfície, sua narrativa espetacular e telenovelesca ajudoua construir.

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Mensagem de Uma Laranja Pocã

Hoje recebi um e-mail de uma laranja pocã. Foi assim: Recebi minhas frutas das compras de sexta-feira, e, depois de higienizar todas, resolvi me sentar para comer uma laranja pocã.

Estranhei que ela se apresentasse com uma casca muito mole, mas sei que essa característica é própria das laranjas pocã. E antes que você pense que laranjas pocã usam banda larga, deixe eu lhe explicar:

O software das laranjas pocã é menos convencional. Elas não precisam de provedores. O seu software envolve duas rotinas simples: Descascar/comer.

Pois bem, descasquei a fruta, e logo ao primeiro gomo, apareceu a mensagem, numa cor cinza: “Hoje não haverá suco”.

Decodificar um mail de uma laranja pocã é simples. Você vai decifrando as sílabas por entre a língua e os dentes.

Decifrei a mensagem e pensei otimista: O suco virá nos próximos gomos. Mas qual! Em todos os gomos, a mesma mensagem se apresentou, em sua cor cinza:”hoje não haverá suco”!

No começo eu quis protestar, mas aos poucos, apossou-se de mim uma tristeza resignada. Num planeta onde não temos cuidado com nossas florestas, com nosssos rios; num planeta onde nossos oceanos são verdadeiros monturos gigantescos de plásticos e todo tipo de poluição; num planeta onde bifes suculentos são forjados numa indústria cruel e desumana; num planeta onde todos os tipos de substâncias químicas ameaçam a vida; num planeta onde o egoísmo é a principal forma de convivência entre os humanos, nesse planeta, as laranjas pocã podem revoltar-se, podem nos negar seu suco saboroso, podem nos mandar e-mails telegráficos, e-mails redundantes,numa espécie de alerta para o que estamos fazendo com nossa mãe Gaia.

Em cada gomo, li a mensagem da laranja pocã, e numa reverência à sua casca rugosa, lhe pedi perdão. Lhe pedi perdão e agradeci pela mensagem. Emgoli o seco daqueles gomos e vim aqui, contar isso a você.

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Entre Pitaias e um Telescópio: Duas Excelentes Pautas no #JPB1

O JPb1 dessa sexta-feira, 3 de setembro, trouxe duas pautas excelentes. A primeira tratou da participação daParaíba na ida do homem à lua, através de um telescópio construído por Afonso Pereira, e que fazia parte do acervo tecnológico da Associação Paraibana de Astronomia.

O laboratório, de grande alcance para o espectro observacional da nossa galáxia, e mais particularmente para coletar informações sobre nosso satélite, está hoje abandonado, num prédio também em ruínas, no centro da cidade, Rua 13 de Maio.

A reportagem, ainda que não o diga, deixa para nossa interpretação, pelo menos duas constatações: A Paraíba tem uma história bonita, para além da história oficial conhecida, que lamentavelmente não está sendo preservada, nem monetizada, parao fortalecimento do turismo, da economia criativa e de projetos em educação e cultura.

A segunda constatação diz respeito ao jornalismo científico, artigo tão escasso dentro da produção de conteúdos de reportagens em nossos veículos de comunicação.

Da minha parte, vou mobilizar meus alunos para recuperarmos a história desse observatório e seus personagens, através de reportagens científicas sobre o tema.

A segunda pauta foi sobre o cultivo da Pitaia no município de São Mamede. Fiquei deliciada. A Paraíba, rica em cactos, está aprendendo a cultivar e consumir a frutinha de cor exótica. A Paraíba é rica, só precisa melhorar as maneiras de descobrir e explorar suas fortunas, que estão amealhadas sobretudo naquilo que o estado guarda em originalidade, singularidade e regionalidade.

E aqui vai um selo de qualidade para os que fazem o JPb1, e o desejo de que boas novas pautas continuem sendo planejadas.

O Braille Nosso de Cada Dia: Uma Breve Arqueologia da Escrita em Relevo

Eu só escrevo em braille. Faço parte de menos de um por cento da população humana do planeta que só escreve em braille.

E digo que escrever e ler em braille é como uma espécie de celebração. O braille foi inventado na segunda década do século XIX, por um menino de 15 anos, franzino, vulnerável, e que, aos três anos de idade, na oficina de couro do seu pai, perdeu a visão, quando brincava com uma sovela que resvalou para um dos seus olhos. O acidente acarretou uma inflamação que cresceu e fez com que Louis Braille ficasse totalmente cego.

A vida de Louis Braille se passou como que num acelerador. Aos 15 anos, no Instituto dos meninos cegos de Paris, inventou o braille. Aos pouco mais de 40 anos nos deixou, vítima de tuberculose, mas seu sistema de leitura e escrita em relevo ganhou o mundo, fez uma revolução inimaginável, abrindo as portas da cultura intelectual para milhões de pessoas cegas em todo o planeta.

Foi na velha reglete que Louis Braille aprimorou seu sistema de seis pontos, e é na reglete que uma criança cega faz, ainda hoje, seus primeiros aprendizados da escrita manuscrita em braille. Reglete e punção: Essas são as ferramentas fundamentais para o braille manuscrito. Curiosamente, o punção, que imprime os sulcos braille na sela da reglete, nos faz pensar na velha sovela que cegara os olhos do menino, mas a tragédia como que lhe entregou um rastilho de iluminação que conduziria todos os cegos do planeta ao gesto formidável de escrever e ler em braille.

Já falei em outras crônicas, da música predileta da minha infância. Uma música seca, repicada, uma espécie de tropel vibrante, produzido pelo som de várias regletes em ação, nas velhas carteiras do Instituto dos Cegos da Paraíba Adalgisa Cunha onde estudávamos nos anos 60. Enquanto as armas de grosso calibre atuavam nos porões da ditadura militar, nós fazíamos o trabalho de aprender sobre escrita e leitura braille. Nossos pequenos cérebros de meninos e meninas convocavam o nosso córtex cerebral visual para a tarefa intelectual de forjar nossa nova envergadura. Nascia ali, naquelas velhas carteiras, sob o repicar das regletes, uma nova coletividade: A dos cegosleitoresescritores dos pontos de Louis Braille.

Eu sempre gosto de celebrar esses dois momentos primordiais: O momento de Louis Braille e o meu próprio momento, 146 anos depois.

Eu nunca mais seria aquela menina franzina, saída do sertão do Pajeú, em Pernambuco,, depois de haver entendido o sistema de Braille. Eu nunca mais ficaria num só lugar, mas palmilharia tantos e tantos mundos improváveis, mundos paralelos que eu tocava com meus próprios dedos, enquanto meu cérebro recolhia os rastros do conhecimento deixados pelo caminho da leitura braille.

Hoje eu sei que os pontos de Louis Braille foram e são a minha bússola. Posicionar as polpas dos meus dedos indicadores sobre essa conformação em relevo dirigiu-me ao centro do mundo intelectual, onde penso, escrevo, divulgo, e nunca me esqueço de que faço parte dessa coletividade que é a única do planeta que pode tocar as palavras para decifrá-las.

O braille de Louis hoje habita as fontes da Microsoft, e, elegantemente está disposto em tablets e linhas braille. Organizado numa linguagem binária, de associação e combinação em espaços preenchidos e espaços vazios, o sistema de Louis Braille já nasceu sob o signo da informática.

Então, de novo, foi como num acelerador. Nós vencemos Louis.  Nosso braille brilha como a estrela de #Tycho Brae, entre os melhores dispositivos eletrônicos inventados na atualidade.

Mas sabe, tem uma piada pronta enganando os gestores míopes: a fábula de um óculos milagroso que vai curar a cegueira. Uma pessoa cega que cooperou com a música das regletes, Louis, não  tem nada  que a cure da sua alegria. Uma pessoa cega que tem acesso a linhas braille, Louis, não    quer ser curada dessa alegria.. Uma pessoa cega que todos os dias vai buscar seu artefato de produção de braille, Louis, não deseja embarcar numa mentira de óculos que vai ler por ela.

Eu posso ler agora, de maneiras diversas. A cegueira, de fato, não está propriamente em mim, mas em gestores, governantes, educadores que não têm a menor ideia da grandiosidade do gesto primordial de Louis Braille.

Viva o Dia Nacional do Braille! Viva o século XXI, onde os seis pontos ainda são a única e formidável invenção para a leitura e escrita das pessoas cegas.                                                                                                      

O Braille Nosso de Cada Dia: Uma breve Arqueologia da Escrita em Relevo

O braille nosso de cada dia: uma breve arqueologia da escrita em relevo

Eu só escrevo em braille. Faço parte de menos de um por cento da população humana do planeta que só escreve em braille.

E digo que escrever e ler em braille é como uma espécie de celebração. O braille foi inventado na segunda década do século XIX, por um menino de 15 anos, franzino, vulnerável, e que, aos três anos de idade, na oficina de couro do seu pai, perdeu a visão, quando brincava com uma sovela que resvalou para um dos seus olhos. O acidente acarretou uma inflamação que cresceu e fez com que Louis Braille ficasse totalmente cego.

A vida de Louis Braille se passou como que num acelerador. Aos 15 anos, no Instituto dos meninos cegos de Paris, inventou o braille. Aos pouco mais de 40 anos nos deixou, vítima de tuberculose, mas seu sistema de leitura e escrita em relevo ganhou o mundo, fez uma revolução inimaginável, abrindo as portas da cultura intelectual para milhões de pessoas cegas em todo o planeta.

Foi na velha reglete que Louis Braille aprimorou seu sistema de seis pontos, e é na reglete que uma criança cega faz, ainda hoje, seus primeiros aprendizados da escrita manuscrita em braille. Reglete e punção: Essas são as ferramentas fundamentais para o braille manuscrito. Curiosamente, o punção, que imprime os sulcos braille na sela da reglete, nos faz pensar na velha sovela que cegara os olhos do menino, mas a tragédia como que lhe entregou um rastilho de iluminação que conduziria todos os cegos do planeta ao gesto formidável de escrever e ler em braille.

Já falei em outras crônicas, da música predileta da minha infância. Uma música seca, repicada, uma espécie de tropel vibrante, produzido pelo som de várias regletes em ação, nas velhas carteiras do Instituto dos Cegos da Paraíba Adalgisa Cunha onde estudávamos nos anos 60. Enquanto as armas de grosso calibre atuavam nos porões da ditadura militar, nós fazíamos o trabalho de aprender sobre escrita e leitura braille. Nossos pequenos cérebros de meninos e meninas convocavam o nosso córtex cerebral visual para a tarefa intelectual de forjar nossa nova envergadura. Nascia ali, naquelas velhas carteiras, sob o repicar das regletes, uma nova coletividade: A dos cegosleitoresescritores dos pontos de Louis Braille.

Eu sempre gosto de celebrar esses dois momentos primordiais: O momento de Louis Braille e o meu próprio momento, 146 anos depois.

Eu nunca mais seria aquela menina franzina, saída do sertão do Pajeú, em Pernambuco,, depois de haver entendido o sistema de Braille. Eu nunca mais ficaria num só lugar, mas palmilharia tantos e tantos mundos improváveis, mundos paralelos que eu tocava com meus próprios dedos, enquanto meu cérebro recolhia os rastros do conhecimento deixados pelo caminho da leitura braille.

Hoje eu sei que os pontos de Louis Braille foram e são a minha bússola. Posicionar as polpas dos meus dedos indicadores sobre essa conformação em relevo dirigiu-me ao centro do mundo intelectual, onde penso, escrevo, divulgo, e nunca me esqueço de que faço parte dessa coletividade que é a única do planeta que pode tocar as palavras para decifrá-las.

O braille de Louis hoje habita as fontes da Microsoft, e, elegantemente está disposto em tablets e linhas braille. Organizado numa linguagem binária, de associação e combinação em espaços preenchidos e espaços vazios, o sistema de Louis Braille já nasceu sob o signo da informática.

Então, de novo, foi como num acelerador. Nós vencemos Louis.  Nosso braille brilha como a estrela de #Tycho Brae, entre os melhores dispositivos eletrônicos inventados na atualidade.

Mas sabe, tem uma piada pronta enganando os gestores míopes: a fábula de um óculos milagroso que vai curar a cegueira. Uma pessoa cega que cooperou com a música das regletes, Louis, não  tem nada  que a cure da sua alegria. Uma pessoa cega que tem acesso a linhas braille, Louis, não    quer ser curada dessa alegria.. Uma pessoa cega que todos os dias vai buscar seu artefato de produção de braille, Louis, não deseja embarcar numa mentira de óculos que vai ler por ela.

Eu posso ler agora, de maneiras diversas. A cegueira, de fato, não está propriamente em mim, mas em gestores, governantes, educadores que não têm a menor ideia da grandiosidade do gesto primordial de Louis Braille.

Viva o Dia Nacional do Braille! Viva o século XXI, onde os seis pontos ainda são a única e formidável invenção para a leitura e escrita das pessoas cegas.                                                                                                     

Escutas do Cotidiano: Até Quando?

Sim, eu fico deleitada escutando as cenas do cotidiano. No meu prédio, ouço a vida acontecendo em arrastar de móveis, batidas de panelas, louças entrechocando-se, risadas, bocejos, espirros.

Deleito-me com os carros de passeio, os ônibus grandes, que sempre me trazem a lembrança de uma noite longínqua em que viajávamos num ônibus grande e eu adormeci com a cabeça no colo do meu irmão Belar.

Outro dia escutei uma criança pequena chorando. Era um chorinho que não convencia ninguém. Chorinho de birra? De sono incompleto? Fiquei feliz só por saber que aquele chorinho seria atendido com abraços, beijos, carinho, que é tudo do que uma criança pequena precisa.

A música do cotidiano é bela porque simples, de uma simplicidade improvisada, rica, múltipla. A música do cotidiano fala de um mundo que flui, vibra, acontece como deve ser. Ou tudo não passa de uma ilusão de escuta?

O choro daquela criancinha pequena trouxe-me à memória a infância das minhas filhas, seus choros de zanga, de fome, seus chorinhos indecifráveis, que a gente colocava no cardápio da birra.

Desejei escutar muitas outras vezes o chorinho de birra daquela criança, ou mesmo os seus balbucios e gritinhos felizes. Enquanto aquela criança chorar e sorrir assim, eu pensava, o mundo estará bem.

Quantas crianças têm o direito a um lar seguro e protegido? Quantas crianças não estão ameaçadas somente por transpor a porta da sua casa, para brincar na rua, comprar uma bala, passear com sua avó?

Quantas crianças pequenas, dentro de suas próprias casas, só conseguem chorar o choro do abandono, da tortura, da violência que tantas vezes as silencia?

É sempre assim, a minha escuta do cotidiano, uma espécie de cenário dos contos de Edgar Allan Poe. A cena inicial é tão bonita. A paz experimentada é tão deleitosa. Mas logo o pensamento, este ser tão irrequieto, se põe a rumorejar suas ironias, seu ceticismo, sua mágoa, suas sombras, suas sonoridades perversas.

Dou pause na minha play list de mundo feliz, Cerro a pequena franja

do deleite e caminho para a realidade, grossa, tirânica, aterradora.

Salto com desespero por entre janelas estatísticas: Violência doméstica, abuso sexual, pedofilia, abandono, tortura, morte. As cifras são estratosféricas.

As notícias da mídia são terríveis. A morte trabalha fácil no terreno da infância, muitas vezes com a ajuda direta de pais, parentes outros, sem falar na caça grossa que a morte engendra com a maior tranquilidade, nas guerras do tráfico, do trânsito, nas guerras das periferias, onde tantas balas perdidas hospedam-se nos pequenos corpos infantis.

Pois bem, a música do mundo agora é cacofônica, dissonante, com notas secas de estampidos, pancadas, silêncios de choro e de respirar.

Como acabar essa crônica? Quero abraçar minhas crianças. Quero abraçar intimamente criancinhas pequenas que choram e sorriem ao mesmo tempo.

Quero sonhar com um mundo onde as crianças possam viver plenamente a sua infância, um mundo regado com ternura, educação, saúde, estrepolias, crescimento saudável. Se todo mundo sonhar junto, será que a gente consegue escutar a música desse mundo feliz?