a Essência do “Farninzim”

(Este post foi publicado originalmente em www.joanabelarmino.zip.net)

 

As vezes, no meio da tarde, minha mãe soltava uma de suas frases históricas, enquanto varria com virulência os ciscos da nossa infância. As frases não tinham

nada de retórica; pequenos queixumes embrulhados em poucas palavras; O mais importante naquela pequena trouxa de pronomes, adjetivos e verbos eram os achados

da sua língua materna, que certamente nunca foram arrolados por qualquer dicionário, antiguidades de uma semântica tão rara quanto a velha porcelana guardada

no fundo do armário, lembrança de uma bisavó caprichosa.

Varria pedaços de pão, farelos de rapadura e dizia: “Eu hoje amanheci com um farninzim…”

A frase ficava reboando no meu espírito como um velho trovão que a chuva houvesse esquecido a rolar pelo céu, órfão do seu relâmpago matriz. Farninzim. Sopesava

aquela palavra como se ela fosse um pedaço de bolo de chocolate, uma banana a que eu fosse tirando a casca devagar, sentindo-lhe o cheiro, conferindo-lhe

as membranas, adivinhando-lhe a semente pouco firme no fundo.

Chuva passageira, infância corredeira. caixotinho que houvesse no cérebro para guardar coisinhas miúdas, para lá ia o achado semântico, envolto em seu nicho de pontuações vagarosas, ruído de vassoura varredeira, cheiro de tarde preguiçenta.

Somente hoje descobri a essência do farninzim. Eu tinha plantado a noite do sábado no centro de uma dose de vodka; vodka, limão, gelo e a noite foi ficando redonda,

sem ser laranja, sendo esfera, sendo circularidades bailando e embalando as

 

serpentes que viriam enrroscar-se no meu domingo.

De manhã o sol já havia rebentado a crosta do mundo. Destapei o pequeno caixote, farrapos de sílabas saltando em círculos, sendo já palavras, sendo já frase velha e íntegra, com todo seu envoltório próprio. “Hoje eu amanheci com um farninzim…”

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