Instigada pelas notícias televisivas e pela conversação nas redes sociais, fui folhear a obra de Alice Munro, escritora canadense Premio Nobel de literatura. Comprovei, à primeira página, que a obra da escritora é daquelas que não se folheiam.
Você começa a ler um dos seus contos, e de imediato é capturada pela força da narrativa, de pronto acha-se enredada na teia dos acontecimentos, tocada pela vividez das paisagens, o cheiro da grama, o impacto da água gelada, a suave quietude do final do dia, o assombro (ou seria encantamento)? pelo que a sua narrativa pode inventar, do meio do nevoeiro.
Não, a obra de alice Munro não é para folheadores. A sua narrativa pede um leitor atento, cingido ao seu traço firme, leitor que escave com ela armários e gavetas,margens de rios cobertas de neve. Pede uma leitora meticulosa, que planeje ao pé mesmo do texto ainda por ser lido, os gestos para o crime imprevisto, a fuga repentina, uma leitora que no ato mesmo de se cumprir o ápice, suspenda o golpe, volte atrás, e recomece com a escritora, um outro modo possível de narrar.
Fico imaginando as perguntas inoportunas que ela já deve ter ouvido dos jornalistas: – Quanto tempo leva para escrever um conto? Da onde vem a sua inspiração?
A obra de Alice Munro, frase à frase, é uma construção em perspectiva do mundo e do espírito humano. Nenhum verbo, nenhum adjetivo, nenhum advérbio fora de tempo e de lugar. Dando voz aos seus personagens, usando a sua narrativa para lhes criar a liberdade de habitarem as estórias, escreve sobre a sua terra, sobre pequenas vilas e cidades do Canadá, mas é como se dali, do seu pequeno jardim, arrancasse verdades universais, como se falasse de pessoas como eu e você, como se de repente adivinhasse aquele pesadelo indecente da noite passada, que a fez acordar, alagada em suor e desejo.
Do primeiro ao último conto, da primeira à última frase de cada conto, a autora lhe entrega, de modo pródigo, uma narrativa magistral, e lhe deixa assombrada, por esse encontro mágico, por esse reconhecimento, por esse como acender de uma luz, por essa comunhão.
Alice Munro não empresta às suas mulheres narradas, nenhum adereço, além da sua feminilidade. Essa feminilidade entretecida de força e fragilidade, de beleza e juventude, de velhice sóbria, raiada por uma discreta, e por isso mesmo, absoluta solidão.
Juliet, Enid, Kath e Sonje,esses e tantos outros nomes emprestam-se às personagens de Alice Munro,dão corpo aos dramas, aos desacertos, encontros e desencontros, em tramas habilidosamente construídas, de modo a nos entregar, para cada conto, um final imprevisível e muitas vezes desnorteantemente simples. Ler alice Munro é um exercício que nos faz pensar na literatura, Como essa espécie de vereda, essa fenda amaldiçoadamente abençoada, por onde mundos previsíveis e inimagináveis, universos paralelos, tocam-se e renegam-se, ou, milagrosamente se reconciliam.