Antes de Chegar

Deitada na minha cama, e pensam que durmo? Que descanso?

Deitada na minha cama, as cinco da tarde, quando a nesga de sol, oblíqua e terna amiga que me faz companhia por todos os dias do verão já deixou a quina da minha mesinha de cabeceira, deitada na minha cama, imagino-me em Paris, na mesa redonda do dia sete de janeiro.

Embrulhada no meu medo, embrulhada na minha emoção, embrulhada no meu casaco cinza, imagino-me a falar o que agora treino sozinha,  para uma platéia que não sei se estará atenta aos rebordos do meu sotaque nordestino, aos sotaques da minha emoção, por estar falando na língua de Luís Braille, na França de Luís Braille.

… C’est avec une immense joie que j’ai reçu la nouvelle de l’accueil de ma communication à ce congrès.

Repasso cada palavra, imprimo ritmo e velocidade à leitura. O que será de mim em Paris ?

Cada dia em que acordo, cada manhã em que a minha nesga de sol, oblíquo raio de luz sobre a quina da minha mesinha me dá bom dia, sinto aproximar-se a hora de cruzar o atlântico, de chegar à França, de recolher com a concha da minha mão, um pouco da terra da aldeia de Couprvay.

O galo da vizinha está a cantar, o bem-te-vi,  lá da sua árvore, ensaia sua própria recitação, e eu, um misto de alegria e medo, sinto já habitar esse não-lugar, entre a minha casa  e a europa.

Ousadia essa minha, de tocar com a mão, um naco da história desses duzentos anos. Ousadia essa minha de tocar com a mão, a terra onde seus pés de menino experimentaram um solo pontilhado de verduras, de pedrinhas, de grãos.

Ousadia essa minha, de preparar com minha própria voz, a fala francesa dessa minha emoção.

Quando 2 de janeiro chegar, terei que agradecer a tanta gente por essa façanha começada !

Mais um dia a dormir sob o solo do tempo. A lua dessa noite vem me visitar, suspensa do seu céu tatuado pela pontografia das estrelas.

No meu coração, o ritmo não é de samba. É de braille, Braille a batucar, todos os gestos da ousadia desse menino de Couprvay, impressos na minha alma, na ponta dos meus dedos,  na ponta da minha língua nordestina a treinar o francês.

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