3 de janeiro. Chegar e congelar, de frio e de apreensão. Aeroporto Charles de Gaule, 11 da manhã, três graus negativos, ninguém a nos esperar, desmentindo-se assim as informações recebidas por internete.
Silêncio dentro do táxi, corações batendo, de alegria, de receio, de frio. Rue Cambrone, Hotel Ibis, 45 euros, “merci beaucoup”, dissemos as duas em coro.
Recepção, a turma do oxente entaramelando francês do livrinho, “Como dizer tudo em francês”, ai que alívio! Quarto 262. Nada de mordomia, é arrastarmos malas nós mesmas. Fuso horário na cuca, banho rápido, roupa e mais roupa, bater perna e queixo também.
Isoladas de tudo. Nossas tomadas aqui precisam de “um’adaptateur”! Nem net, nem rede nos celulares. Supermercado. Sanduíches deliciosos, suco de laranjas do Brasil! Despesa do dia: cem euros, precisamos maneirar.
4 de janeiro. As pessoas expectoram de forma abundante em Paris. Não soubemos disso pelos jornais. A notícia está nas calçadas, sempre fresquinha, até que a neve vem e recolhe tudo dentro da sua brancura.
Missa de homenagem na capela do Instituto dos Jovens Cegos de Paris. Tosses terríveis no eco da capela. Com personalidade, com ritmo. O “pai Nosso em francês, e nós caladas, escutando a oração.
Caminhar, aventurar-se pelo Mont-Parnasse. Meeio dia e os termômetros não saem dos três negativos.
Voltar pro hotel. Dor de cabeça francesa só passa com analgésico francês.
Catedral de Notre Dame. A noite é do organista cego Jean-Pierre Legay. Quantas vozes um órgão tem? Legay nos mostrou as mais pungentes, as mais complexas, as mais intensas, as mais suaves, as vozes múltiplas a desfiarem sonhos a reverberar, na imensa catedral.
5 de janeiro. Quanta neve Mariana! Nossos pés a triturar aquela brancura, nossos corpos, debaixo da montanha de roupas, a tentar decifrar a corrida dos termômetros. Sete graus negativos agora, nove da manhã, enquanto caminhamos para a sede da Unesco. O Congresso vai começar de verdade.
Cinco continentes, 46 países, quase quinhentas pessoas a pensar em braille, a falar em braille.
E a neve também, batucando nas vidraças da sede da Unesco, um estranho texto em braille, texto branco, espalhando-se pelas calçadas, pelo asfalto, pelas bordas dos carros.
Caminhar pela neve, dependendo do calçado, lembra nossos pés sobre um imenso tabuleiro de goma para tapioca, esfareladiça, nossos tênis fazendo croach croach croach pelas ruas congeladas. Ou então a gente sente como se pisasse em areia granulosa, bruif bruif bruif do solado das nossas botas.
6 de janeiro. O dia é branco, Paris é linda dentro dos seus nove graus negativos. Fizemos amigos. Ibrahim, de Togo; Gérald, da fronteira francesa com a espanha; o simpático casal de holandeses e seu cão Fredrick; Lynda, a moça de Hon Kong; a tailandesa com sua semi-burca; o canadense surdo-cego que nos fez chorar e aplaudir por quase dez minutos, ele que nos ensinou o alfabeto das mãos, braille para que cegos e surdos falem entre si.
A noite é da torre, e da música da neve sob nossos pés.
7 de janeiro. Braille! Braille! Os franceses amam aquele jovem franzino que inventou esses pontos de luz.
E minhas mãos a tremer sobre o texto em francês, minha língua a tropeçar nas palavras. Eu falei, falei e tremi.
8 de janeiro. Estou em Couprvay, dentro da casa de Luís. Meu coração se recolhe para dentro do silêncio, enquanto a guia fala, fala, fala! Tento imaginar a casa do início do século XIX, abrindo suas comportas para o dia branco da aldeia. Como que escuto o som das ferramentas, na oficina subterrânea do celeiro. Não quero escutar o grito do menino, a azáfama, o interromper dos ferros.
Corremos para o jardim. Um jardim branco, pejado de neve. Escavo aquela brancura fria, aperto-a nas minhas mãos. A neve tem vida, personalidade. No breve atrito do calor da minha mão, a neve se reinventa. Penso num menino a sorrir, dono daquele jardim de brancura.
A guia nunca mais se cala. Meu coração reclama paz, reclama silêncio. Meu coração quer escutar o vento, quer cerrar as cortinas do tempo; meu coração quer a paz, para o longo dia do menino de Couprvay.