Chegam de todos os cantos, como num aluvião. Portas e janelas fechadas, travas e correntes, nada disso importa. Invadem a sala, espalham-se pelos quartos, derramam-se pela varanda e cozinha.
Do mar da Malásia, num átimo de segundo, tão rápido quanto a velocidade da luz, invadem minha noite com sua estranha perplexidade, suas lágrimas, sua angústia, que agora se apossa do meu coração, feito pequeno minifúndio atravancado por essas dores alheias.
São como duendes feitos de vento, feitos de nada, onipresentes em todos os cantos da casa, crianças pequenas, jovens, homens de negócios, senhoras piedosas, todos pedindo à meia voz, nessa balbúrdia sussurrada, que eu lhes invente vozes, que recrie os seus diálogos prosaicos, antes da tragédia. Soluçam pelos trajes da minha invenção, seus perfumes prediletos, que eu adivinhe o cardápio, os sonhos desfeitos, os telegramas por enviar, suas compras, suas compras no grande mercado chinês.
Tento escutar o mar da Malásia, ‘todo comprimido aqui dentro, bramindo, envolvendo, engolfando, escondendo.
Não posso mais com o peso dessas ondas revoltas, tanto sal, tanta saudade alheia, enredada nos meus cabelos. Não posso mais com essas lágrimas, essas perguntas, essa procura, essa escavação de silêncios.
Anônimos do mundo, que nem sabem das preces em minha língua, pedindo com estranha sofreguidão, que eu lhes decifre essas horas mortas, feitas de espera, em abandono de lemes e protocolos.
Tanto peso, tantas mãos erguidas, tantos olhos esbugalhados, e eu já não posso mais segurar tanta angústia represada, tantos dias amanhecidos, pesados sobre a minha noite.
Lábios cerrados, não venham esses hóspedes noctívagos sentirem o hálito da morte. Mãos abertas para o desamparo, que eu só tenho essa crônica toda tecida com as palhas da incerteza.
Quero dormir, quero fechar a porta do meu quarto, cerrar a tranca desse aluvião, resvalar para dentro de outro sonho, um sonho só meu, feito de silêncio, feito apenas dessa casa, despovoada de todos esses anônimos do mundo, e seus pesares, e suas ganâncias em arrancar das minhas mãos vazias, as listas, os anúncios, as notas fúnebres, as flores que não pediram nem querem receber agora.
Quero fugir da lisura desse mar gelado, com sua mentira de água e sal, espremendo entre suas ondas, o futuro que não virá.