Não me pergunte o dia, não vou me lembrar, nem o ano, tampouco. Me lembro da tarde, da cena, eu e minha mãe, ao pé do grande rádio de madeira, escutando sabe-se lá qual capítulo da novela Couvades, na rádio Clube de Pernambuco.
Por que me lembro com tanta nitidez daquela cena? Nós duas, uma de frente para a outra, tendo entre nós o rádio grande, as descargas, as intermitências, o beijo soprado entre os personagens centrais da trama?
Como pôde minha mãe parar a faina da casa, e postar-se comigo naquela tarde de sol a pino, para escutar juras de amor em vozes melodiosas, beijos soprados em vagos “ohohohohoh” suspirados?
Não, não me peça, não tenho nenhuma fotografia da cena, senão a imagem na memória, cheia das nossas presenças, do nosso silêncio, da nossa atenção às descargas, às intermitências, aos beijos soprados, às batidas de porta, às músicas, aos comerciais de sabonete Rexona.
Eu e minha mãe, no canto mais nobre da sala de jantar, ali onde se postava o rádio, eu e minha mãe, inteiramente alheias ao bulício da rua, às brigas dos meus irmãos, EU E MINHA MÃE, UNIDAS PELAS ONDAS DO RÁDIO,SOFRENDO AS DORES DAQUELES QUE HABITAVAM AQUELA RÁDIO-NOVELA, SUSPENSAS DA TARDE, DO SOL, AFERRADAS ÀQUELAS VOZES.
Aos meus dezessete anos, chegou lá em casa a primeira televisão. Era grande, também de madeira, como o velho rádio da sala de jantar. Muitas vezes sentei-me ao lado da minha mãe, para assistir à novela “Vejo A Lua no Céu.
E vieram outras novelas. Anjo Mal, Pecado Capital, Mulheres de areia.
Nenhuma delas porém, gravou-se com tanta força na minha memória, como a cena daquela tarde, eu e minha mãe, ao pé do rádio, nossas alegrias, nossa angústia, nosso desespero atados à angústia, às alegrias, ao desespero daqueles personagens dos quais só conhecíamos as vozes.
Tantos anos passados, revejo aquela tarde, e não sei se por artes da minha saudade, não sei se por força do amor, sinto que vivi com minha mãe um raro momento de intimidade, de beleza, de serenidade, um raro momento em que nosso vínculo se me mostrou, como um halo de prata a nos enredar, mãe e filha, irmanadas de modo tão simples e tão profundo, naquele pedaço de tarde, naquele pedaço de sala, onde estávamos só nós, como se numa ilha distante.
Não, você não vai entender se eu não lhe explicar. Naquela tarde, minha mãe foi só minha. Naquela tarde, eu fui só da minha mãe, que os seus outros doze filhos não tinham lugar naquele pedaço de tarde, naquele pedaço de sala, feito ilha distante, ocupada pelos personagens de Couvades, a nos dar notícias das suas dores, suas angústias, suas alegrias.
Nem me lembro como acabou aquele capítulo da novela, nem do momento em que minha mãe desligou o rádio. Só sinto a força de ter estado lá, com ela, naquele lugar em que ela estava toda comigo e eu, encantada de tê-la só para mim.
Jô, quando me chama de Irá, e leio algo que fala sobre teus sentimentos, me sinto tão irmanada contigo. Pela amizade e admiração que tenho por te. Sinto em te, uma irmã que não tive. Minha vida perpassou por muitas dificuldades e carência. Não só financeiramente, mas de ausência de convivência familiar, de jestos de intimidades, ou carinho, manifestação, como queiram chamar. Mas agradecida por todas as oportunidades que DEUS me comtemplou. De tudo que aprendi, ensi, as pessoas que conheci, compartilhando um pouco de tudo que me faltou. Grande beijo, Iraci.i