Falei muitas vezes sobre essa personagem em nossas colunas. Por artes de uma licença literária, dei-lhe mãos, pernas, dei-lhe a ciência da ocupação permanente. Inventei-lhe expressões faciais, fala articulada, ainda que lacônica. Presumi-lhe jornadas longas ou curtas, sempre certeiras.
Não, a morte não tem uma cara. Sequer dedos erguidos, pernas atarefadas, mãos prontas a segurar uma adaga. A morte não é senão, a consequência final da nossa própria vida, feito molho de cordas guardado para a ocasião, feito lençol dobrado, à espera de cumprir sua virtualidade de criar o hiato, a sobra, a queda.
A morte não espera, ela é a própria espera. Não surpreende, mas alimenta-se da surpresa, do improvável, da ocasião.
A morte não tem sequer um plano, uma agenda, uma escolha. A morte se realiza como um baque suave de fruto apodrecido, ou como consequência de um braço estendido, de duas mãos cientes da esganadura, a morte triunfa na imprevidência de quem dirige embriagado, ou daquele que tem no ato de matar, o único prazer de sua vida. Como um agulhão de alegria, a morte realiza-se nessa agonia lenta do preparo, engrenagem demente dessa ânsia pelo fazer morrer.
Foi um erro pensar na morte como essa implacável senhora de mil faces. Inventamos essa palavra, como o ente final das nossas vidas, demos-lhe o estatuto da vivência, com sua corporeidade perfeita. Passamos tempo de mais a fugir de um encontro com sua mão, imaginando-lhe o vigor ou a leveza assassina.
A morte não existe, senão como essa máquina viva que debulha por mil maneiras, o último ato, o último gesto, o último suspiro da vida humana.
Se não acredita no que estou dizendo, leia os jornais, veja a televisão.
“eu pensei que ela houvesse morrido, disse a mulher, com suas imprecisões gramaticais, sua voz adulta cheia de infantilidade tola. Pensei que ela houvesse morrido, e então meu marido, que era mais forte, atirou-a pela janela aberta a golpes de tesoura, para que seus últimos rescaldos de vida pulsassem ali, sobre a grama recém aparada.
Não, a senhora morte nunca viria visitar aquela menina pequena, não fosse a sanha da esganadura, não fossem os braços rijos, atirando o fruto da sua ira para longe.
A morte não é senão, a engrenagem alimentada pelos esquecimentos. E são tantos e tantos, sobretudo crianças pequenas, esquecidas dentro de carros de luxos fechados, ao rescaldo do sol do meio dia.
A morte não existe, senão como um ato, um gesto, um dar de ombros, uma contenda, uma veia por onde escoam a cumplicidade, o desleixo, a falta de atenção, o desespero, o ciúme, as paixões, a droga, a fome, o delírio, a crueldade, essa lâmina fina que as vezes habita o espírito dos seres humanos. Agora sei, a morte não me visitará, porque ela não passa da minha própria vida, no seu último ato.