As vezes acomete-me esse silêncio, esse hiato, essa espécie de deserção do mundo dos que explicam, interrogam, refletem, incitam, mobilizam, argumentam, renegam, avaliam, desprezam, compreendem e tantas mais ações nesse mundo coberto e recoberto por símbolos.
Foi o que aconteceu após os aterradores eventos vividos na França da semana passada. Guardei minhas poucas palavras, recolhi-me ao silêncio e bebi sozinha minha taça de mágoa, de tristeza, de desesperança.
Sim, digo que o mundo é recoberto por símbolos, porque é através deles que deságua um oceano de sentimentos, emoções, um planeta inteiro absorto em tele-estar lá, no foco dos acontecimentos. Examine as primeiras postagens. Perplexidade, revolta, opiniões, muitas opiniões. O humor virado de ponta cabeça, as penas quebradas, o riso transmutado em silêncio.
No mundo contemporâneo, servido pelos dispositivos tecnológicos, o estar em presença das coisas tem os seus graus de participação, e, ao mesmo tempo, cria a ilusão de que podemos falar sobre os acontecimentos, desnudá-los, compreender sua essência.
A verdade é que um acontecimento tão impactante pede reflexão cautelosa, exige a tentativa de olharmos para os seus atores sem a pressa das explicações fáceis, dos slogans oportunistas, das comparações infelizes.
Minhas primeiras palavras sobre o episódio são ao mesmo tempo uma tímida tentativa de distanciamento e de aproximação. A civilização ocidental assentou os seus alicerces sob os gumes de uma crítica aguda e cortante. Os mais de dois mil anos de tradição do pensamento ocidental, legou-nos Descartes, os enciclopedistas,Marx e Frankfurtianos, e devemos parar por aqui, pois a lista não caberia nesse nosso artigo.
Se nos voltarmos para a arte, poderemos dizer, que será a arte, a boa arte, senão esse lugar de escavações, essa semeadura da dúvida, da inquietação, do agulhão mais fundo da ironia e do humor sardônico, ao velho estilo voltairiano?
Que não se espere pois do ocidente civilizado, a disposição para a generosidade, o respeito às crenças do outro, às diferenças, sobretudo ali onde o ocidente esmera-se por fazer valer sua opinião, no terreno da arte.
Sim, a liberdade de expressão é uma conquista da Europa moderna e o seu berço pode-se dizer, é a França. Os cartunistas sabiam que estavam brincando com fogo, e acicatavam, provocavam, escavavam os lugares das crenças, dos fanatismos, das superstições,
Com traços firmes, esgaravatavam o muro extremo da fé cega, com ponta de faca afiada, somente para fazer brilhar a liberdade da ousadia, da indisciplina e da criação.
Sequer foram surpreendidos em sua reunião de trabalho. Esperavam por aquilo. Mas esperavam também, que o Estado os protegesse. Surpreende a facilidade com que os irmãos adentraram ao recinto, chamaram seus desafetos e os mataram.
Quebrou-se a possibilidade do debate, da contra-argumentação.Os poderosos, os oportunistas, os ingênuos, movem-se agora sobre os escombros dessa triste história recente, e eu tento encontrar um ponto de equilíbrio, nesse meu oceano feito de mágoa e de pena, pelos cartunistas que se foram, pelos irmãos, que deram a sua vida por um ato extremo de desespero cego. A que poder serviram eles? Para além das declarações de responsabilidade, que poder saberá melhor apropriar-se desse acontecimento?