Uma Longa Nota de Melancolia

Não tenho nada alegre para lhe contar. Eu poderia inventar números e cifras, poderia, por artifício de palavras leves, inventar uma crônica amena. Não posso fazer isso, quando a vida reboa inapelavelmente nos trilhos do presente, com todas as sílabas da sua tragédia.

Juro que eu queria estar sentada aqui, escrevendo as minhas trinta e seis linhas otimistas, mas não posso. Não posso, porque na minha porção de humanidade pesam os crimes, dos mais banais aos mais terríveis. Minha pele como que se eriça, meus nervos sofrem de uma atenção insuportável, meus olhos como que choram para dentro.

Por que não nascemos vegetais, ocupados em frutificar, dar sombra, segurar com nosso peso de raízes enramadas, o vigor das nascentes, a proliferação e a conservação das reservas de água?

Nascemos gente. Burilamos pedras, madeira, ferro. Inventamos armas, e, mesmo sob o risco, o tremor dos dedos, aprendemos a nos matar.

Do ponto de vista da evolução cósmica, nossa passagem por aqui deverá ser breve, um bilhão de anos, talvez… A escrita da nossa crônica macabra, porém, é tão abundante, que se houver, num futuro longínquo, escavadores dessa tragédia, compreenderão o quanto fomos exímios no exercício de nos matarmos.

Eu sei, você não poderá chegar até ao fim dessa minha coluna, nem eu tampouco quero escrevê-la até ao fim. Na verdade não há um fim, há somente a cena do sono interrompido, sono de uma menina pequena, abandonada pela mãe, à mercê da ira do seu pai, de arma em riste.

Há a minha tentativa de entorpecimento, ao som de uma sonata de Bach. O coro triste de vozes interrompidas de crianças, abandonadas em carros de luxo, atiradas ao rio, envenenadas, impregnam o meu espírito com essa longa nota de melancolia.

Fala-se em crise do capital, em quedas das bolsas, perdas de lucro, desvalorização de ações, recessão econômica. Corre-se atrás de remédios, reformam-se leis, cuidam-se em enxugar orçamentos.

Na minha cegueira, vejo outra crise: Perene, , agônica, prolixa. A crise do descarte do humano.

Descarte da vida humana, naquilo que ela tem de mais jovem, mais tenro, mais vulnerável. Como se nascer e morrer, fossem cenas do mesmo ato, do mesmo caminho paralelo, como se compor esse arranjo de células, nervos, músculos, cérebro, não valesse senão o apertar do gatilho.

E já agora, essa longa nota de melancolia se faz insuportável, porque me acode, como um grito em ré sustenido, a triste cena das meninas-bomba na Nigéria.

 

(Este post será publicado amanhã, em minha coluna impressa do Jornal A União)

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