Dora Limeira se foi. Não, a frase não é de uma crônica, de um conto, não foi escrita em um romance. A frase está cravada em nossos corações, com sua adaga de ponta afiada.
Apronta-se o obituário, resolvem-se as demandas da burocracia, e nós, tentamos digerir o telegrama bruto, tão curto como uma pedra atirada num lago.
Dora Limeira se foi. Encerrou-se no mutismo obrigatório do não mais estar aqui, enquanto uma saudade sem aviso já bate as portas, pede passagem, espreme-se e invade todas as comportas.
Atarantada, vou buscar uma antiga crônica que fiz pra ela, no seu sexagésimo nono aniversário. Vou buscar a crônica, as mãos do meu espírito trêmulas de tristeza.
A Colheita de Dora
Naquele dia prometeu a si mesma que escreveria 69 palavras. Sim. Sessenta e nove palavras, que escolheria a dedo, sopesando as sílabas, avaliando a sonoridade, arranjando o conjunto, como se todas elas formassem um imenso ramo de flores.
E com seu passo lépido rumou para o jardim dos seus pensamentos, agachou-se junto à plantação das palavras, e com as mãos, como gostava de fazer, escavou aquela sementeira a fim de escolher as melhores palavras do ramo.
E cada palavra que subia à tona, estava úmida de vontade por se fazer traçado, por habitar entre vírgulas, por conhecer, como se de boca serrada estivesse, o breve silêncio do ponto final.
Palavras brotos, maduras, palavras tolas, sem força nenhuma, todas vinham pousar no seu regaço, pedir um lugar, e assombrada, encantada, ela cedia a todas elas, arrumava seu ramo heterogêneo, vacilava entre um se e um não, mas não recusava nenhuma delas.
E vieram as palavras da multiplicação, todas bojudas de sonoridade, todas ansiosas por vergar aquele ramo nos seus ponto e vírgulas, suas interrogações, muitas delas a dormitar um pequeno cochilo na quietude do ponto. E bondosa como era ela, apaixonada como era ela, teve uma idéia. “E se eu multiplicasse essas 69 palavras 69 vezes?
E no jardim pleno de riso, leva a vida toda a
arranjar palavras nos seus ramos de flores.