A Crônica dos nossos Dias

A crônica dos nossos dias flui como se fora um rio virulento, pesado e sem método, arrancando casas, derrubando prédios, dos maiores aos mais pequenos, desmantelando escolas, igrejas, soterrando vidas inteiras, paralisando pequenos e grandes gestos, enterrando esperanças, sonhos, pequenos e grandes sonhos.

A crônica dos nossos dias não economiza papel, mas o alfabeto da sua escrita perdeu a métrica, o alento ritmado de cada linha, o cuidado com o desenho da letra, a escolha das palavras.

A crônica dos nossos dias exibe, sem meias palavras, um rio que já fora doce, agora morto, despovoado da sua flora, desabitado por seus peixes, os grandes, os pequenos, todos irmanados nesse terrível silêncio do morrer.

A crônica dos nossos dias é o discurso estrito com a morte, escrito com as letras terríveis dos toros de árvores arrancados e atirados sobre outros destroços. É o palco onde a própria morte inventa seu balé macabro, toda vestida de lama.

Chorássemos todas as nossas lágrimas, e não sei se o rio voltaria a viver. Desdobrássemos todas as laudas da nossa lei, assinássemos, com nossas canetas sujas de lamas, todas as cifras das multas previstas, não sei se o rio voltaria a viver.

Já matamos ou adoecemos outros rios. O Jaguaribe, o Tietê, o Beberibe… Nunca tínhamos matado um rio assim, de repelão, arrancando-o do seu ir e vir, esmagando o seu ser, a sua essência, a sua serenidade.

Nunca tínhamos perpetrado a morte súbita de um rio, sem que houvesse tempo para uma última sílaba da sua fala líquida e bela, sem que pudéssemos aprontar as primeiras notas desse lamento que agora tentamos compor, com nossas lágrimas, nosso coração ferido.

– Cadê o rio doce? E o que vamos dizer às nossas crianças quando elas nos perguntarem sobre isso.

– Bento Rodrigues, Paracatu, o que foi feito deles? O que dizermos a quem veio de longe, procurando seu lugar de nascença?

Não pudemos salvar o rio, Bento Rodrigues, Paracatu, são lugares que não existem mais. Desmantelaram-se sob a virulência de um rio novo, sujo e pesado, o rio dos rejeitos de lama. Somos menores agora. Andamos de cabeça baixa, falamos com voz sumida, e já não escutamos o fluir das águas, límpidas e doces do rio que vivia.

A morte venceu de novo, e carrega a experiência nova de haver matado o rio, de haver pisoteado suas margens, revirado o seu fundo, arquivado o seu curso nos terríveis redutos de lama.

Perderam-se os lenços do adeus, perderam-se os dias, não há mais rio, nem meninos correndo pelas suas margens.

 

 

 

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