Já são mais de mil casos notificados em todo o país, a maioria deles no nordeste. Penso nelas todos os dias. Constituirão um segmento específico de um grupo maior, as pessoas com deficiência. Pode-se dizer, são vítimas de uma tragédia, uma tragédia construída, alimentada e consolidada por fatores diversos. A má formação genética e o diagnóstico de microcefalia assinado por um médico, são somente os aspectos mais evidentes dessa tragédia. Por trás de cada caso, silenciosas, invisíveis, desfilam as condições de desigualdade, pobreza, condições precárias de saneamento, de armazenamento de água, e tratamento inadequado do lixo. Cada atestado assinado por um obstetra, apresenta as sílabas invisíveis, porém retumbantes, da precariedade do sistema de saúde, e porque não dizer, a precariedade do sistema educacional e de formação do povo. O maior artífice dessa tragédia é também invisível. Um pequeno mosquito, armado com uma terrível engenharia de reinventar-se no Zika-virus, afetando o que de mais precioso há numa sociedade: A infância e os cérebros. Estamos vivendo de fato, um lento e inexorável capítulo trágico no processo de evolução humana. Um capítulo que fala do descarte dos cérebros, sobretudo os mais jovens, desperdiçados em mortandades perpetradas pela polícia, ou em mortes despoletadas por tragédias naturais ou anunciadas, conforme o lamentável desastre ocorrido em Mariana, Minas Gerais. Eis que com sanha renovada, soma-se a esses braços armados, um pequeno e eficiente braço armado com a inoculação certeira, apontada para a infância vulnerável.
O Brasil terá agora que revisar suas estatísticas com respeito aos índices de pessoas com deficiência. As crianças acometidas por microcefalia que puderem sobreviver e ficar entre nós, herdarão uma profunda dívida social do estado, da sociedade, dos sistemas de educação e saúde, de cuja falência, esses pequenos inocentes são as maiores vítimas.
Como viveremos com essas crianças, que terão deficiências graves de visão, de audição, déficits graves na sua formação intelectual? Que mundo legaremos a essas pequenas vítimas? Que não seja um mundo fascista e excludente; um mundo intolerante e indiferente. Que possam essas crianças viver e sorrir, que possam encontrar a plenitude, a fraternidade, o afeto e as oportunidades que lhes permitam ser, na diversidade do humano. E já agora, quando me preparo para as linhas finais da coluna, ouço o alerta na televisão, feito por um médico assustado que diz: – Mães, não é hora de engravidar. E penso comigo: Mães, parem de fazer cérebros, nosso mundo não está preparado para cuidar bem dos seus cérebros, desperdiçados sob os rejeitos de lama, de bala perdida, cérebros comprimidos pela força de um vírus que reinventa com vigor, as múltiplas fórmulas da sua inoculação perversa.