A Invenção do Futuro

Por esses dias comecei a ler “Vozes de Tchernobil”, da prêmio nobel de Literatura Svetlana aleksiévitch. O livro é como um soco na boca do estômago, e exala a angústia profunda daqueles que foram despatriados sem qualquer aviso, sem preparação, à força de uma explosão.

Leio, e penso no mundo para o qual estamos sendo solapados, um mundo bizarro onde a madrugada empresta seu silêncio e seu lençol de frio para a arte das facas, a explorar a vida dos mais vulneráveis, um mundo onde a festa se desfaz sob a virulência da morte, em seus múltiplos tons de cinza.

Devoro as páginas do livro, tisnadas de tristeza, mas penso sobretudo no meu país, e me vem à mente, com toda a força de uma erosão, a ideia de que também instalou-se aqui uma espécie de Tchernobil, não a partir de uma explosão, mas do modo como Svetlana Aleksiévitch nos descreve, um mal estar, uma sensação de caminharmos para um lugar que ainda não conhecemos, um salto para o que ainda não existe, o desfazimento de um solo de pertencimento, de um conjunto de crenças, nossas mãos vazias, esticadas para o abismo.

Ocupamos uma passarela estreita e desfilamos ao ritmo dos festejos olímpicos, salpicados dos gritos de protesto e do medo insidioso que a todos aflige, um medo daquele que anda a seu lado, com seu casaco esquisito, sua falha dentária, sua inapetência para o sorriso de facebook.

Passo a passo, como se numa segunda tela, assistimos à nossa própria derrocada, enquanto os políticos, os banqueiros, a justiça de plantão, inventam frases de efeito para a fábula midiática a ecoar diuturnamente os presságios envernizados da mentira e da invenção do futuro.

O futuro é o passado reformado. Reforma da previdência, da educação pública, da saúde, do desenvolvimento urbano, da distribuição da água e da energia, da exploração do petróleo, soba cúpula de um estado mínimo, anêmico e cartorial, assinando decretos e medidas provisórias com sua caneta Montblanc.

O futuro inventado, sob a capa do cinismo mal disfarçado da política, acentua as estratégias de evacuação dos mais pobres, de assassinato a sangue frio, dos negros, dos índios, dos homossexuais.

Passo a passo, saltamos para esse lugar estranho, passo a passo, nos apropriamos do nosso próprio Tchernobil.

 

Este post será publicado amanhã, em minha coluna impressa do Jornal A União.

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