Primeiramente, enquanto rodavam os créditos finais, eu e mais algumas pessoas desvairadas, alucinadas, gritamos. Foi um grito rouco, no cinema silencioso, duas palavras apenas. Duas palavras que bem poderiam ser traduzidas para luta e resistência.
Mas me deixem começar pelo começo. Eu queria ir assistir ao filme Aquarius, incitada pelas críticas, os comentários dos amigos, mas sobretudo atiçada pela curiosidade em conhecer o aplicativo whatscine, incorporado às salas de cinema, e que prometia a estratégia da audiodescrição para pessoas com deficiência visual.
Uma explicaçãozinha breve para que você entenda o que é audiodescrição. Trata-se de uma estratégia de acessibilidade, que garante pistas verbais para cenas visuais, assegurando assim, que pessoas cegas tenham acesso a todos os conteúdos de um filme, uma telenovela, um espetáculo teatral, etc.
Munida do meu celular, onde havia baixado o aplicativo whatscine, rumei ao cinema junto com minha irmã e uma amiga. As instruções eram claras. Buscar meus conteúdos, ir aos downloads, selecionar o filme e sincronizar.
Aquarius é um filme magistral. Coloca no centro da cena, a cultura regional, as particularidades do Recife, suas áreas de moradia, das mais nobres às mais humildes. De dentro de uma história local, porém, vai desembrulhando processos universais que movem o mundo desde muito tempo. A desigualdade, a especulação imobiliária, um modo de organização da família, tecido entre tramas de amor e pequenas crueldades, conscientes ou inconscientes, lugares onde a solidão vem habitar, com suas lembranças doces, ou suas tenazes de fogo.
Aquarius é um filme com um texto denso, entremeado por silêncios que falam. Silêncios onde é a câmera que nos entremostra, uma janela, uma rua apinhada de vida, uma fachada branca, sob o escrutínio do olhar de Clara. Clara, a personagem central, um amálgama de força e ternura, força e ternura, como uma espécie de manto de peça única, , emoldurando o palmilhar da sua guerra em defesa da sua vida, das suas crenças, da sua autonomia.
O desenrolar da história de Clara foi me mostrando a grandiosidade e a ousadia do enredo, a maestria dos autores, com seu sotaque nordestino iluminando as tonalidades do texto. Atada ao narrador do whatscine, chorei e ri nas horas certas, e senti pavor quando segui Clara e seus acompanhantes ao apartamento de cima, infestado de cupins.
A promessa se cumpriu, na certeza retumbante que palpitava dentro de mim. Pessoas cegas, cinema e audiodescrição,e as múltiplas imagens reveladas pelo olhar do outro, ao meu vazio de olhares, à minha fome de ver.
Não tenho palavras para essa alegria, senão essas que lhes dou, inundadas da minha gratidão e de uma nota amarga que ainda precisa ser percutida. Menos de um por cento dos conteúdos audiovisuais brasileiros, contam hoje com audiodescrição.
O meu oscar íntimo vai para Aquarius e para a fachada branca daquele prédio de apartamentos.