Entre Lula e o meu Pai: Um Título Eterno

Publiquei o post abaixo na minha coluna impressa da sexta-feira. Consternada, soube que por razões político-partidárias, o título de Doutor Honoris Causa que seria concedido ao ex-presidente Lula foi adiado. A história nos cobrará, cedo ou tarde, pelas injustiças que vêm sendo cometidas contra esse homem do campo que ousou sonhar e vencer. Segue minha homenagem, ao meu pai e ao presidente, com os timbres do afeto, da gratidão e saudade do velho Mariano, “In memoriam”

 

Ele estará todo paramentado com as vestes cerimoniais, e, seguido por um grupo também paramentado, será conduzido ao posto de honra, para receber o título de Doutor Honoris Causa. Nessa hora, e por todo o tempo que durar a cerimônia, eu me lembrarei do meu pai, das suas mãos trêmulas, do seu cigarro de fumo de rolo, da sua asma, das horas de fim de tarde em que eu lavava os seus pés, depois da lida na roça, do jeito que ele tinha de brincar comigo, imitando a voz do carteiro, diante do portão fechado.

Me lembrarei do medo que o meu pai tinha dos comunistas, me recordarei da tristeza que lhe assolava os olhos, em todo o fim de colheita, quando contava o dinheiro que havia apurado, para levar à casa do fazendeiro, que era o fiador de tudo que ele havia comprado durante o ano: Açúcar, café, sabão, bolacha canela para as crianças, e o seu fumo de rolo.

Me lembrarei de um dia longínquo da minha infância, e da raiva do meu pai, entre apressadas respirações asmáticas. O fazendeiro o tinha expulsado das terras, porque minha mãe havia votado num político diferente daquele que o fazendeiro pedira a meu pai para que ela votasse.

Naquele dia, mastigando sua raiva, meu pai soube que gosto tinha a injustiça, ainda que precariamente, conheceu o amargo da situação em que vivia, vendendo suas horas, seu suor, sua força, a custo da subserviência e da servilidade.

Meu pai tinha medo dos comunistas e, olhava desconfiado para o bando de jovens que muitas vezes iam à nossa casa para as primeiras reuniões de formação do Partido dos Trabalhadores. Quando falávamos em Luís Inácio da Silva, ele sorria e desconversava. Morreu em 1993, quando Lula era a força mais importante do movimento sindical brasileiro.

Quando for lido o panegírico cerimonial, e mesmo depois, eu me lembrarei do meu pai, das suas lágrimas fáceis, do seu sorriso, das muitas cercas que ergueu, ao longo da vida, para proteger terra e gado alheio, das muitas noites insones, já na cidade grande, vigia de uma fábrica de cimento. Como numa espécie de quebra do protocolo, dedicarei também ao meu pai, o título que Lula recebe da UFPB.

Em silêncio, e em pensamento, farei o meu próprio panegírico e o entregarei a Lula, com o os timbres do afeto e da gratidão.

Gratidão por esse homem do campo, que abriu porteiras, passadiços, portões, levando a alma nordestina ao mais alto topo das esferas de poder. A alma nordestina simples, corajosa, resistente, pronta para a luta e para o acolhimento, tecida na partilha do pão e da fome, da seca e da água, do rezar quase dormindo, do olhar erguido aos céus, entremesclado de tristeza e esperança.

Junto com as honrarias do título formal, lhe entregarei o mapa do solo comum onde nos forjamos, todos os nordestinos pobres do campo, onde ele reina, como aquele que mais trabalhou, para que agora andemos de cabeça erguida, envoltos na mesma luta encarniçada por justiça e por igualdade.

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