Era uma vez um mundo governado pela justiça. Sentada à sombra de uma árvore frondosa, a justiça disciplinava as leis, julgava os delitos grandes e pequenos, formulava sentenças perfeitas e corretas, mediante testemunhos e provas, refletia e sopesava em sua balança, a validade dos indícios, recusava as maledicências e os mexericos, nunca se permitia uma conclusão apressada, ou um veredicto pouco convincente.
Nesse mundo regido pela justiça, pouca ou nenhuma importância era dada ao estardalhaço, a fama advinda de algum caso em que o julgado era celebridade, tanto assim que a justiça dedicava preocupação e interesse em igual proporção, desde ao caso mais simples, ao mais rumoroso.
Constituía-se espetáculo de rara beleza e de profundo aprendizado, o momento em que a justiça tinha de aplicar a pena. A sua dosimetria nunca ultrapassava os limites do razoável, e, com sua mão hábil em medir proporções, com a serenidade e a brandura do seu espírito, ela infundia ao mesmo tempo nessa dosimetria, medidas exatas de efeito punitivo, combinadas com medidas de efeito ressocializador e de crescimento e recuperação das condições de humanidade.
É assim que naquele mundo, sabia-se, como líquido e certo, por anos e anos de um firme reinado, que a justiça sempre estaria ali, acima de tudo e de todos, garantindo a lei, preservando o bem-viver, mediando os conflitos, julgando com determinação, coragem e pertinência, todos os pequenos dilemas daquele mundo.
Naquele mundo em que a mão firme da justiça repousava tranquila sobre as folhas da lei, palavras como ódio, intolerância, desrespeito, sempre que ameaçavam ganhar corpo em algum comportamento, eram enxotadas como se fossem moscas indesejadas. Naquele mundo, os processos tinham começo, meio e fim. Tinham arrazoados fortes, e a justiça fazia questão de somente dar seu veredicto final, tendo diante de si, todas as provas perfiladas.
Naquele mundo, por confiarem cegamente na justiça, os réus muitas vezes antecipavam-se e confessavam seus crimes. Pediam perdão, determinando eles mesmos, em sintonia com o olhar firme da justiça, as medidas da sua punição.
Mas eis que um dia, sorrateiramente, a injustiça, irmã gêmea da justiça que vivia no estrangeiro chegou com malas e bagagens, e armou seu quartel naquele reino tranquilo. Ardilosa, aproximou-se da justiça e ofereceu-lhe ajuda nos processos. A injustiça sabia manejar as palavras, e, com mão ligeira, foi disseminando no trabalho da justiça, pequenas doses de intolerância, pequenos desvios que permitiam convicções em vez de provas, e sobretudo, sob a pecha de dar transparência aos processos, obrigou a justiça a aliar-se à mídia, que com estardalhaço e espetacularização, passou a cobrir todos os processos daquele mundo.
Célere, a injustiça usurpou o trono da irmã e passou a governar. Agora, em doses maciças, impingia ódio, medo, desconfiança e intolerância entre os súditos. Preocupada, a justiça tentava dialogar com a irmã, mas, autoritária, batendo na sua nova e bela mesa com mão firme, apontava a pilha dos processos resolvidos a partir dos indícios e das convicções e retomava com novo vigor, a sanha da perseguição e da maledicência, tudo com apoio da grande mídia.
Horrorizada, um dia a justiça viu um dos seus súditos mais corretos cair nas mãos da injustiça e ser julgado pela sua nova lei de exceção. Com pavor, viu aquele home simples e nobre apoiar-se na balaustrada do último andar do belo shopping da cidade. Tapou olhos e ouvidos, mas a morte do homem furou-lhe os tímpanos e esvaiu de si, toda a vida que possuía.
(Este post será publicado amanhã, em minha coluna impressa do Jornal A União)