Você olha para o facebook, e se depara com posts à procura da criança que cada um deve carregar dentro de si. Nada contra as pílulas encapsuladas em frases que tentam despertar a alegria, mas eu não consigo abrir a caixa das palavras mágicas, e sei que a varinha de condão, que as estórias de fada incutiram tão bem em nossas cabeças, a varinha de condão hoje, não passa de um jeito de falar, de interpretar a lei, de arrebanhar os seus, sob o manto da justiça, e cuidar da sua salvação.
Eu nunca me esqueço da estória antiga, que minha irmã Maria me contava na hora de dormir. Minha irmã não conseguiu aprender a ler e escrever. Passava o dia todo cuidando das lides da casa da nossa família grande, e de noite, com um riso bom no rosto manso, deitava minha cabeça no colo e me contava a estória do castelo belo belo.
A menina andava à procura de uma chave que abrisse o castelo belo belo, mas, no seu caminho, só havia monstros, o de uma cabeça, de duas, de três… Eu dormia sempre nesse ponto da estória, e assim nunca cheguei à casa do último monstro, com suas sete cabeças torpes. O castelo belo belo persistia intocado, fechado dentro do meu sono.
Não há estória de fada que nos haja preparado para o mundo em que agora vivemos. A grande partida na qual estamosenvolvidos, não se assemelha em nada com o fantástico campeonato de quadribol, no qual os jogadores empenham-se para apanhar primeiro o pomo de ouro.
Na nossa história, o pomo de ouro já foi apanhado, e ainda que a tv, o rádio, os jornais e a cibesfera nos digam para corrermos atrás dele, o pomo de ouro está bem guardado nas pregas do manto da justiça, e só é empregado em ocasiões muito especiais, para salvar do rigor punitivo, os eleitos da sua corte.
O pomo de ouro nem é tão bonito assim. Dependendo da ocasião, ele pode ser um intrincado de palavras difíceis, um discurso enviesado e vago, mas que tem o condão de abrir portas e mudar uma realidade, torcer a chave da lei e abrir as asas da liberdade sobre as cabeças dos seus protegidos. Abracadabra? Pocos pocos salamocos? Na nossa história, cabem muito mais coisas nessas palavras, do que sonha nossa vã inocência.
O castelo belo belo existe de verdade, mas a sua chave é guardada por monstros normais, de uma cabeça apenas, com dentes excelentes e propósitos torpes. A mesma chave que abre o castelo belo belo, abre e lacra malas cheias de dinheiro.
O castelo belo belo não é tão belo assim. Nele, os passos ecoam à noite, na direção do porão, ali onde se decidem as coisas grandes da república, na certeza de que o pomo de ouro está bem guardado sob as pregas do manto da justiça, um suspiro de alívio agitando a fumaça dos charutos, porque sabem que na hora certa, o pomo de ouro será usado com maestria para que tudo fique assim, na ordem e na lei.
Peço perdão à Maria, peço perdão à infância, peço perdão à criança que ainda vai crescer, os monstros estão todos juntos, no primeiro castelo, guardam muito bem o pomo de ouro, e não há o “viveram felizes para sempre”. Só existe o próximo minuto dramático de cada dia, só existe a terrível máquina ceifadeira do futuro, só existe o primeiro monstro, com seu riso mal e sua habilidade, preparando a próxima manchete trágica para o jornal da noite.
(Este post será publicado amanhã, em minha coluna impressa do #JOrnalAUnião).