Escrevo como quem salta obstáculos. Escrevo como quem olha para o chão, tentando escolher um lugar seguro onde pousar o pé, dar o próximo passo. Escrevo como quem busca respirar, algum naco de ar limpo. Escrevo como quem tenta lavar as mãos, retirando um pouco de água da superfície, vagarosamente, pequenos goles, não vá eu despertar a lama, os gravetos, o cheiro a esgotos.
Escrevo como se caminhasse sem sair do lugar, os pés batendo impunemente no mesmo pedaço de solo, as mãos a chacoalhar o vazio, a cabeça voltada para a frente, a fitar o nada.
Olhos arregalados, escrita de quem não vê a próxima letra, o intervalo entre as frases, a dicção de uma narrativa possível a imprimir-se em cada linha.
Escrita sem objetivo, sem plano, as palavras zunindo e se esboroando no silêncio, na certeza de que já não haverá leitores que compreendam essa determinação.
Habermas disse outro dia, com outras palavras, que a grande crise do mundo radica na falta de leitores. Eu digo mais. Digo que se ainda os houver, leitores estão sendo caçados, execrados, silenciados.
As pessoas já não leem. Elas apenas reagem aos gritos. Frases telegráficas de condenação, tiros nas vielas e nas vias principais, ordens de prisão, ordens curtas para que se arquivem processos, decretação de sigilo, páginas e páginas borradas, não escritas, cinismo e negação do que já foi, cinismo e negação do que será.
Escrevo como quem procura uma falha, uma zona de contato, uma chave que desperte os leitores, uma sílaba qualquer que os paralise, e que de pronto, ao modo de um guia, os reconduza ao início da página, mas logo abandono esse propósito vago, e me perco na falta de acento, nas fontes serifadas cujas hastes de coisa nenhuma espreitam como vermes, para essas frases sem sentido.
Escrevo como quem tenta apreender a caligrafia do desespero. Por isso repito a mesma linha inicial, mudando as palavras, mas o eco é o mesmo. Não há o que escrever, porque não haverá leitores.
As páginas do jornal giram pela casa ao sabor do vento, e são como que aplausos e bandeiras desfraldadas, a saudarem a inclemência e o cinismo. E na tv, ancoras desfilam sorrisos e acenos para uma realidade sombria, destacando palavras como fome, sífilis, bala, bíblia, pedofilia, arquivar, arquivar, arquivar.
Afio a mesma pontada de desespero, para a escrita dessa linha inicial, em meio à balbúrdia desses dias, os relógios zerados, as cidades entulhadas de inércia e de contradições, os gritos e as buzinas dos batedores, abrindo portas, chamando os censores, os julgadores, batendo pregos e parafusos nas páginas da lei, organizando o mundo onde leitores já não serão necessários.
(Este post será publicado amanhã em minha coluna impressa do #JornalAUnião)