Meu Corpo de Leitora

Descobri agora, que meu corpo de leitora é completamente diferente desse meu corpo postado no sofá, segurando o livro, abrindo de vagar suas páginas, seguindo o fio da narrativa, as vezes demarcando um pedaço de passagem de que gostei mais.

Meu corpo de leitora é etéreo, pequeno, maleável. Pode voar, nadar, andar em barcos, livrar-se de tempestades. Pode encarapitar-se num cacho de palavras, e de repente sair correndo. Pode andar dias a fio junto com os personagens, sem uma dor sequer numa junta, nas unhas dos pés.

Meu corpo de leitora faz alianças com personagens, despreza outros, e, sem nenhum remorso, deseja a morte destes últimos.

Meu corpo de leitora entra em quartos fechados, abre cartas que não são suas, chega antes dos personagens, aos banquetes, às festas, aos velórios daqueles de quem desejou as mortes.

Fora do meu corpo, sentado no sofá da sala, em uma tarde nublada, a segurar pacientemente o livro de capa dura, cheirando a tinta nova, meu corpo de leitora saiu para longe, evadiu-se, agarrado ao traço dos personagens, ao visgo dos seus dramas e alegrias, à contemplação das suas qualidades, dos seus defeitos, das suas porcelanas, da água suja dos seus enredos, deitada fora com o ponto final.

É somente quando precisa chorar, que meu corpo de leitora emerge do fundo do drama dos seus personagens, e com mão ao mesmo tempo suave e firme, sacode dos meus olhos o estoque de lágrimas salgadas. Meu corpo de leitora não tem lágrimas, nem sorrisos, então, sem qualquer cerimônia, pede a mim que sorria ou que chore, e se aborrece quando me ergo do sofá, para preparar uma xícara de café, enquanto o livro degusta sua pausa.

Nessas horas, meu corpo de leitora, agarrado ao meu pensamento com sua adaga fina, insiste, grita, anda para a frente e para trás, como um pequeno unicórnio a espancar o tempo parado.

Meu corpo de leitora não aguenta a paciência, a espera de que eu tenha um livro entre mãos. Meu corpo de leitora deve ser feito de matéria quântica, que não compreende o conceito de espaço-tempo, porque só habita mundos paralelos traçados nessas cápsulas que chamamos livros.

Gosto de pensar que meu corpo de leitora é essa minha sombra, encostada à parede da sala, olhos erguidos para a minha estante de livros.

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