Crônica Amanhecida

Sexta-feira. Acordei com um pássaro gritando. Deixei-me ficar dentro daquela película de entorpecimento, olhos fechados, toda ouvidos, toda memória, tentando entender a urgência, o quase desespero daqueles trinados.

Minha imaginação, essa pobre besta doente, liberta das imagens do mundo, afeita à sua própria modelagem, cinzelou engrenagens ferrugentas de condicionadores de ar, e um pássaro estripado, ainda cantando.

Outros ruídos foram invadindo a cena da sexta-feira. Os conhecidos latidos dos cães da vizinhança, a monotonia do trânsito, uma pequena nuvem a desfazer-se em plena manhã, como se fora o mundo a carpir uma dor crônica, espécie de unha encravada no espírito do tempo.

E de novo, sem aviso, o pássaro gritou. Vive. Trina com a força de quem não tem sequer uma unha partida.

Repórter do mundo das coisas que não falam, canta para os seus, alguma notícia rutilante.  Tece a rede do discurso a ser pronunciado por cada pássaro que o entenda.

E me dou conta de que desde que me entendi por gente, foi sempre assim, os pássaros acordando o mundo, vigiando com seus trinados, algum entorno desconhecido, alertando os seres que não se alimentam de televisão, nem de jornal, com pequenos grãos de cuidado, bem menos de 140 caracteres, milésimos de bits desse mistério, essa insondabilidade, algo que nunca poderemos ler.

Totalmente desperta, dou-me conta de que sou eu, e o meu mundo, que temos uma unha encravada, uma dor crônica, um desespero latente que tentamos disfarçar, encenando com brilho, cores e letras garrafais, as notícias que serão lidas no dia seguinte, curtidas, sublinhadas, compartilhadas, escorrer de uma fala inútil, que não nos afeta.

Atiro para longe os lençóis, tento sacudir esse torpor, visto-me do dia de sexta-feira, gratificada por aquela urgência, aquele desespero, aquele canto matinal, de cujo mistério nada sei.

E eis que como uma lupa clarividente, a tristeza se me apresenta, para reavivar as achas da minha angústia.

Tento ludibriar o tempo ácido. Tento inventar uma letra para o canto do pássaro.

não enxote a tristeza. não queira que ela vá logo embora. A tristeza pode lhe ensinar com quantos fios de algodão se tece a sua alma.

Tristeza não se cura com o limite do cartão de crédito. Tristeza se vive até o seu limite, depois é lexotan e sonoterapia.

Se a tristeza veio lhe visitar, ofereça-lhe o melhor lugar da casa e aprenda com ela a tecer a crônica das suas horas.

Seja o governador da sua tristeza. Dê-lhe pão, vinho e pague você mesmo a conta da conveniência.

E quando a tristeza for partir, cuide para que leve todos os pertences, a fim de que não haja desculpas para retornar à casa do seu coração.

 

 

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