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“Meio Estreito”, Ou Um novo Jeito de imprensar e Sacudir Leitores

         “Meio Estreito” chegou, e com ele, a escrita de sabre de Roberto Menezes,em contos curtos, vibrantes, inquietantes mesmo. Eu falo de “escrita de sabre”, mas, em algumas estórias, o escritor nos serve mesmo é vidro moído, em frases telegráficas e desconcertantes.  

            O livro traz novidades. Nas outras obras de Roberto Menezes, somos impactados pela mesma escrita agônica, mas esta espalha-se pelas páginas, laboriosa, prolixa na forja do caos, do desespero permanente. Aqui, conforme o título já anuncia, a estrutura narrativa alinha-se, vem para o centro da página, curta, precisa, desdobrando-se feito serpente matizada, pronta para a largada, o bote, a partida, o breve repouso dos corpos abandonados no sono.

            O primeiro conto traz um aviso implícito: Escrever pouco e deixar que o leitor faça o resto. E como num desfile, chega o vendedor de salgados, indo e vindo nas quilhas narrativas de Roberto Menezes. E vem a moradora do brejo, mariposa presa às idas e vindas do seu ladrão, o desassossego tisnando suas unhas de angústia e pólen de rosas.

            E eis que nós, os leitores, vamos sendo aprisionados nos fios dessa teia, sendo encurralados e empurrados para o centro dessa usina criativa, ali, onde em frases telegráficas, percutem o caos, a agonia, o vibrato perpétuo desse cosmos particular, encolhendo e distendendo  o mundo, a criar colisões impossíveis de partículas, cheiros e sons de toda ordem.

            E lá vamos nós, pobres leitores, colados à litania dessas vozes, entrando em salas obscuras de cheiros duvidosos, desaguando em ruas e praças, sendo sacudidos e revirados, para cima, para baixo, sem aviso nem tempo para respirar.

            E rastejamos junto com as formigas, e assistimos nas lives delas, e em tempo paralelo, o trabalho da morte num pedaço de rua todo sujo do lanche que não foi entregue.  E vemos a “linha”, essa palavra tão pequena, fazendo o trabalho bruto da reflexão, criando como que o compasso, a métrica de uma vida falhada.

            E eis-nos chegados ao último conto, narrativa da curiosa saga do herói. A sequidão, o pagamento da cidade, a luta, o ir e vir, a pregação da mãe, a menina sorridente a apontar o lugar da água, a menina a impeli-lo ao fundo das coisas. Escrever muito, em parágrafos curtos. Fremir o pulso do mundo na sonoridade obsessiva, cinzelada no meio estreito da linha.

            Roberto Menezes é paraibano, vive em João Pessoa, ama Tibiri, mas sua escrita cria e estilhaça universos paralelos, tantos quanto as partículas conhecidas no mundo quântico. A escrita de Roberto Menezes tem essa miscelânea de sabores que faz a gente pensar em vidro moído, servido cru.

Meu Corpo de Escritora

Meu corpo de escritora habita o quarto de despojos da minha memória. E, com a paciência de uma velha senhora acumuladora, guarda tudo o que encontra. Cenas prosaicas de rua, extratos de cheiros, os maus e os bons. Antigas lembranças, sensações, sonhos, uma variedade tão grande de coisas, que não se pode nominar.

Meu corpo de escritora, velha senhora de braços longos e memória arguta, arranca das minhas mãos o jorro das palavras, e sem ordem, nem disciplina, vai lhes dando lugar na escrita derramada sobre a folha em branco.

Meu corpo de escritora, esta ladina senhora de mãos que não suam, rouba o que pode nas minhas viagens. Uma conversa íntima na mesa ao lado, um tilintar de pulseira num braço alheio, o jeito de contar as cédulas do atendente da recepção, enquanto chupa o vazio por entre os dentes.

Ladina senhora, a espreitar e demarcar, nas margens dos livros dos outros, uma escrita nova, uma metáfora que depois ela possa sujar e transformar, com alguma tinta antiga do seu alforje.

Trabalha como se fora louca, esta ladina senhora, sem qualquer disciplina, sem tempo nem hora. E ausenta-se, por dias a fio, em vadiagem incerta por não-lugares, a dormitar o germe de alguma frase, boa ou malsã.

As vezes logro escutar a faina do meu corpo de escritora. E escuto mais. Batidas loucas na porta do quarto de despejo. É meu corpo de leitora pedindo sua obra. Inútil. Meu corpo de escritora, enquanto trabalha, desconhece a fome desta pequena senhora etérea, esperando lá fora, tentando entrar, inutilmente.

E como trabalha, a velha cigana! Retoca personagens, empurra outros malarrumados para o centro dos seus mundos, encanta-se com algum ente que precisa de mais atenção, de mais narrativa, e queda-se, a velha senhora, a mimar este ente como se fora um primeiro filho.

Apaga, monta e remonta, atira para longe restos de enredos, como se fossem refeição de ontem requentada.

Inconformada, cospe nas frases novas, e escava de mim o que pode. Descobre meus sótãos, onde guardei o limo das minhas dores. E de lá volta com feridas remontadas sobre os ombros, e nas mãos, carrega quase-pensamentos que não se firmaram, pequenos enredos interrompidos, que vai ver o que pode ser feito com esses arremedos de escrita.

Sem dó nem piedade, sem qualquer confrangimento de consciência, saqueia o que pode, e arrasta para o seu armazém, velhos hábitos, gestos tolos, frases de livros antigos, um grito distante, que escuto num carro em movimento, que pode amoldar à sua vontade, na sua escrita delirante.

E de repente, sem qualquer aviso, atira para longe o que foi escrito. Deita-se sobre os despojos da sua lida, olhos cerrados, corpo inerte, indiferente ao ruído da porta, sacudida pelas mãos frenéticas do meu corpo de leitora.

 

(Este post foi publicado ontem em minha coluna impressa do Jornal #AUniao).

Meu Corpo de Leitora

Descobri agora, que meu corpo de leitora é completamente diferente desse meu corpo postado no sofá, segurando o livro, abrindo de vagar suas páginas, seguindo o fio da narrativa, as vezes demarcando um pedaço de passagem de que gostei mais.

Meu corpo de leitora é etéreo, pequeno, maleável. Pode voar, nadar, andar em barcos, livrar-se de tempestades. Pode encarapitar-se num cacho de palavras, e de repente sair correndo. Pode andar dias a fio junto com os personagens, sem uma dor sequer numa junta, nas unhas dos pés.

Meu corpo de leitora faz alianças com personagens, despreza outros, e, sem nenhum remorso, deseja a morte destes últimos.

Meu corpo de leitora entra em quartos fechados, abre cartas que não são suas, chega antes dos personagens, aos banquetes, às festas, aos velórios daqueles de quem desejou as mortes.

Fora do meu corpo, sentado no sofá da sala, em uma tarde nublada, a segurar pacientemente o livro de capa dura, cheirando a tinta nova, meu corpo de leitora saiu para longe, evadiu-se, agarrado ao traço dos personagens, ao visgo dos seus dramas e alegrias, à contemplação das suas qualidades, dos seus defeitos, das suas porcelanas, da água suja dos seus enredos, deitada fora com o ponto final.

É somente quando precisa chorar, que meu corpo de leitora emerge do fundo do drama dos seus personagens, e com mão ao mesmo tempo suave e firme, sacode dos meus olhos o estoque de lágrimas salgadas. Meu corpo de leitora não tem lágrimas, nem sorrisos, então, sem qualquer cerimônia, pede a mim que sorria ou que chore, e se aborrece quando me ergo do sofá, para preparar uma xícara de café, enquanto o livro degusta sua pausa.

Nessas horas, meu corpo de leitora, agarrado ao meu pensamento com sua adaga fina, insiste, grita, anda para a frente e para trás, como um pequeno unicórnio a espancar o tempo parado.

Meu corpo de leitora não aguenta a paciência, a espera de que eu tenha um livro entre mãos. Meu corpo de leitora deve ser feito de matéria quântica, que não compreende o conceito de espaço-tempo, porque só habita mundos paralelos traçados nessas cápsulas que chamamos livros.

Gosto de pensar que meu corpo de leitora é essa minha sombra, encostada à parede da sala, olhos erguidos para a minha estante de livros.

Carta para Ronaldo Monte

 

Querido Rona.

 

Tenho um coração em desconcerto, e entre mãos, o teu “Manual Prático do desaparecimento”.

Procuro no livro uma mensagem cifrada, uma chave que seja, que possa abrir o mundo do entendimento, do consolo, da plena aceitação.

Seu plano de fuga deu certo. Sem aviso, sem estardalhaço, foi-se o seu riso frouxo, sua tagarelice alegre, sua voz morna a vaguear entre as sílabas de alguma crônica, alguma poesia. Minhas lembranças, da gente juntos, como que se atropelam na minha memória desalinhada. Lembra daquela oficina de Haikai, com Alice Ruiz, Valéria, Beto, Everaldo…. Naquele dia passamos horas a fio sentados no jardim, tentando escrever haicais que faziam que estourássemos de riso, de tão ruins que eram.

Naquele dia, você tentou me ensinar a criar alguma figura na areia. Já nem me lembro que figura era, só me recordo da sua paciência, da sua galhofa, do seu frouxo de riso.

E no Clube do Conto? Que tempo bom era aquele nosso, de espicaçar aqueles de quem mais gostávamos? E veio o “Lunário perpétuo”, onde escutei os sininhos de vento a brigarem com sua risada. E os lançamentos, onde você me conduzia pelo braço, e eu me sentia encantada e envaidecida, feliz de poder fazer duo com suas traquinagens.

E a festa da sua embaixada em Usupp? Tá bem, pode ser que eu tenha escrito errado, mas naquele lugar, por onde se chegava a partir de uma geografia impossível, Cabedelo/ Usuppy, naquele lugar você plantou a liberdade no centro de uma constituição escrita em apenas uma página de crônica. Naquele lugar você era o embaixador, e eu pedia uma vaga de ministra, enquanto bebericávamos cerveja e sucos, e sorríamos a mais não poder.

E nem faz tanto tempo, todos acorremos à bodega, para o lançamento do seu Manual Prático de Desaparecimento, que afinal estava mesmo desaparecido. Os poemas em um caderno, você chamando as pessoas para ler ao microfone, prometendo um segundo lançamento ao qual não pude ir.

Somente hoje, quando abriu-se essa imensa clareira de silêncio, somente hoje compreendi que você sempre habitou no centro da palavra. Com a palavra, você cerziu, rasgou, cinzelou, esculpiu memórias do fogo, desvelou paixão insone, inventou falas para encantar crianças pequenas, desenhou comtraço ao mesmo tempo delicado e firme, , poemas para canções admiráveis.

E eis que vasculho entre as páginas do seu manual prático de desaparecimento, e só encontro o tempo a liquefazer-se em espera, em promessas de reencontro, sílabas grafadas pela sua mão, como uma múltima oferenda, um canto timbrado pelos tons da beleza, um canto a forjar como que asas, como que pétalas, como que sonhos de esperança.

Eu queria dizer tanta coisa Rona. Mas só fico aqui dando voltas em torno desse meu espanto, por esse silêncio absoluto, essa interrupção, esse gesto inacabado. Fico aqui revirando essa minha tristeza, enquanto palavras pálidas, na página do jornal, repetem o eco dessa minha carta de despedida.

 

(Este post foi publicado ontem, sexta-feira, em minha coluna impressa do Jornal A União)

Os Cidadãos de Bem Estão na Rússia

O Brasil midiático está envergonhado com as peraltices dos brasileiros com as mulheres russas. Sim, toda indignação é pouca para essa bandalheira. Entretanto, eu tenho aqui um rol de observações incômodas a serem feitas para mídia brasileira.

Senão vejamos: Recordam-se da abertura da Copa do Mundo em 2014, quando a presidenta Dilma Rousseff foi veementemente ofendida por um bando ruidoso de torcedores, que em alto e bom som, mandavam que ela fosse tomar ali onde não pode ser escrito?

Não duvido nada que alguns desses espécimes, brancos, endinheirados, também foram para a Rússia, levando na bagagem o seu machismo, a sua educação de quinta categoria, o seu smartphone de alta resolução, para causar com as garotas russas.

Pois bem, no episódio de 2014, ficou o dito pelo não dito. A imprensa falou pouquíssimo sobre o episódio, e não duvido que alguns âncoras até tenham se regozijado, pois vivia-se o terrível clima pré-eleitoral.

A mais alta autoridade do país, diante de inúmeros estadistas estrangeiros, sendo literalmente mandada a tomar onde não pode ser escrito, e tudo depois sendo tratado como peraltice, como brincadeirinha de jovens rebeldes. A grande mídia, esta senhora conveniente, fez cara de pouco caso e desprezou o tema, apesar do seu alto valor de noticiabilidade, da forte capacidade de indignação que a cena continha.

Por que agora todo esse espanto para os episódios da Rússia? A mídia não reconhece esse tipo de gente? Não identifica a formação do seu DNA, naquilo que há de pior na cultura brasileira, perpetuado e reforçado por uma flagrante falta de impunidade? A mídia Vende a ideia de que o povo brasileiro é simpático, acolhedor, gentil. Oi? E então o episódio de 2014? E as lamentáveis cenas de mulheres sendo violentadas para que depois se exponha tudo com todas as cores bizarras nas redes sociais? Pior, gente! E os ancoras de tv que desancam impunemente as mulheres, destilando misoginia e machismo, de maneira impune, com louvação inclusive de grandes levas de comentaristas de ocasião?

E no parlamento, então a mídia não se indigna com esses senhores de paletó e mandato, fazendo apologia ao estupro e à degradação da mulher?

Pois bem, senhora grande mídia, apresento-lhe o que há de pior na cultura brasileira, essa massa cheirosa que gasta muito dinheiro e resfolega, tanto aqui como lá, sobre as noções mínimas de boa educação e de respeito, para mostrar-se  como realmente é, machista, misógina, porque nem nada nem ninguém pode atrapalhar sua brincadeirinha. São da mesma leva daqueles meninos do plano piloto, lembra-se, senhora grande mídia. Aqueles meninos só queriam brincar, quando acenderam, e levaram à morte, até as últimas células, o índio pataxó que dormia na calçada.

Esse povo vive aqui, senhora grande mídia, e tanto aqui como lá, eles só querem brincar. E se algo der errado, o manto protetor da lei os há de proteger.

 

Chegou a Hora!

Chegou a hora em que mulheres de todo o país vão falar da sua escrita, da sua literatura, vão encher nossa #Jampa de palavras, no #MulherioDasLetras! Mais que isso, chegou a hora de apresentar #TiaLila ao mundo, à cidade de Jampa, aos leitores que arriscam perseguir meus delírios!

 

O lançamento será no sábado, 14, a partir das 18h, e já tou com aquele frio na barriga. O que dizer sobre esse ensaio de romance? É uma brincadeira. Um nano-romance, cujos capítulos mais longos não chegam a dez linhas.

Uma estória de ficção científica, cheia de improváveis acontecimentos! E mais não conto.

 

Você pode ler o livro em ebook ou em papel, se preferi. Dê uma conferida em

 

https://www.editoracrv.com.br/produtos/detalhes/32320-tia-lila

 

Se quiser, vá conferir ao vivo sábado, no lançamento do #MulherioDasLetras!

Foi Golpe

 

 

A manchete que os jornalistas da grande mídia não ousam formular, aparece e grita dentro da sua narrativa. No dia 31 de agosto de 2016,consumou-se mais um golpe de estado, chancelado pelo parlamento, pela justiça e pelas organizações de imprensa do país, retirando do poder, a quarta presidenta eleita pelo voto popular.

O desfecho surpreendente daquela votação, separando o julgamento dos senadores em dois momentos distintos, revelou exatamente o que a oposição apregoara até à exaustão, no decorrer do processo. A presidenta foi afastada por artimanhas retóricas e processuais, não havia crime de responsabilidade, não havia dolo ou má fé. Por que então torná-la inabilitada para as funções públicas?

Quando brandiu a constituição, quando apelou para a linguagem coloquial, própria da sua região, para apregoar, “Depois da queda, não se pode escoicear”, o presidente do senado, Renan Calheiros encontrava um sinônimo primoroso para não mencionar o golpe: Queda, derrubada.

Alguns minutos após o golpe, Michel Temer, o presidente indireto, falou aos seus ministros, reclamando da divisão na sua base e dizendo que a suspenção da inabilitação poderia ter sido um gesto claro de boa vontade do parlamento. Nem naquela hora o presidente indireto disse a verdade. Ela não poderia mesmo ser dita. A suspenção da inabilitação era um pequeno suspiro de alívio, uma pequena pílula de destensionamento para a consciência de políticos que até o início de março faziam parte do governo da presidenta deposta, e que, nos últimos meses, utilizaram o melhor dos seus esforços para conspirar, negociar, consolidar o golpe que se acelerava dentro do parlamento.

Uma segunda recomendação, daquela curta fala do presidente, antes de embarcar para a China, merece o destaque da nossa coluna. “Divulguem o governo. Dou-lhes toda a liberdade para falar à imprensa, mas divulguem o governo”, disse ele, ainda que com outras palavras. O presidente indireto sempre soube, e sabe-o ainda agora, o governo não poderá prosperar sem o apoio da grande mídia.

A grande mídia aliás, escreveu nesse processo, um dos mais tristes capítulos da sua história recente. Cinquenta e dois anos antes, constituía-se no braço principal do golpe de 1964, construindo e difundindo para a sociedade, a narrativa da revolução, da mudança, do país novo.

Novamente colaborou grandemente agora, construindo e inflacionando manchetes negativas contra a presidenta e seu governo, agendando e convocando para manifestações, mantendo como pauta consonante, onipresente, ubíqua e monotemática, a crítica incisiva em favor da desqualificação da presidenta.

E prosseguirá agora, no esforço de valorizar o “plano Michel”, dispondo dos seus ancoras e dos seus horários mais flexíveis em seus canais fechados e em seu jornalismo de revista. E ainda contará com um puxadinho latino americano, via “El Clarín”, em Argentina, e também na imprensa comercial colombiana.

Não me surpreenderei se nas próximas eleições, a maioria da população fugir dos descaminhos da política, e dar vitória ao voto nulo. Penso na sociedade brasileira como um grande trem desgovernado. As elites, os políticos e a grande mídia divorciam-se flagrantemente de um projeto de cidadania. O país retrocede irremediavelmente e o remédio do impeachment é mais um veneno importante nessa derrocada.

A Colheita de Dora

 

 

Dora Limeira se foi. Não, a frase não é de uma crônica, de um conto, não foi escrita em um romance. A frase está cravada em nossos corações, com sua adaga de ponta afiada.

Apronta-se o obituário, resolvem-se as demandas da burocracia, e nós, tentamos digerir o telegrama bruto, tão curto como uma pedra atirada num lago.

Dora Limeira se foi. Encerrou-se no mutismo obrigatório do não mais estar aqui, enquanto uma saudade sem aviso já bate as portas, pede passagem, espreme-se e invade todas as comportas.

Atarantada, vou buscar uma antiga crônica que fiz pra ela, no seu sexagésimo nono aniversário. Vou buscar a crônica, as mãos do meu espírito trêmulas de tristeza.

 

A Colheita de Dora

 

Naquele dia prometeu a si mesma que escreveria 69 palavras. Sim. Sessenta e nove palavras, que escolheria a dedo, sopesando as sílabas, avaliando a sonoridade, arranjando o conjunto, como se todas elas formassem um imenso ramo de flores.

E com seu passo lépido rumou para o jardim dos seus pensamentos, agachou-se junto à plantação das palavras, e com as mãos, como gostava de fazer, escavou aquela sementeira a fim de escolher as melhores palavras do ramo.

E cada palavra que subia à tona, estava úmida de vontade por se fazer traçado, por habitar entre vírgulas, por conhecer, como se de boca serrada estivesse, o breve silêncio do ponto final.

Palavras brotos, maduras, palavras tolas, sem força nenhuma, todas vinham pousar no seu regaço, pedir um lugar, e assombrada, encantada, ela cedia a todas elas, arrumava seu ramo heterogêneo, vacilava entre um se e um não, mas não recusava nenhuma delas.

E vieram as palavras da multiplicação, todas bojudas de sonoridade, todas ansiosas por vergar aquele ramo nos seus ponto e vírgulas, suas interrogações, muitas delas a dormitar um pequeno cochilo na quietude do ponto. E bondosa como era ela, apaixonada como era ela, teve uma idéia. “E se eu multiplicasse essas 69 palavras 69 vezes?

E no jardim pleno de riso, leva a vida toda a

arranjar palavras nos seus ramos de flores.

Passagem para Solidão

 

Deu no Estadão do domingo. Edilson de Souza, 33 anos, se prepara para deixar São Paulo e regressar a Flores, pequena cidade do interior de Pernambuco. Maurício Barbosa da silva também volta para o Piauí, onde vai trabalhar por conta própria no município de Santana. Solon de Lima voltará para o Crato, com toda a família. Aparecido fernandes de Souza volta para Salgueiro , interior de Pernambuco.

O mantra geral é a crise econômica, que desacelerou a construção civil, os postos de trabalho no comércio, assim como nas indústrias automobilísticas.

A leva de pessoas retornando ao nordeste me faz correr ao meu ebook, para rever o magistral livro do saudoso amigo Geraldo Maciel, “Aqui as Noites são mais Longas”, onde ele narra a saga de milhares, senão milhões de nordestinos, os chamados “cabeças-chatas”, voltando todos para o nordeste, deixando São paulo em grandes multidões, à pé, à cavalo, em velhas carroças, ônibus desconjuntados, caminhões abarrotados de gente.

A presciente narrativa de Geraldo Maciel, retrata uma verdade irrecorrível. São Paulo, a grande metrópole de ferro e concreto, é sustentada pelos nordestinos. São eles que erguem os prédios, limpam a sujeira do dia a dia da cidade, abrem as escolas, vigiam o sono dos empresários, limpam suas casas, servem-lhes comida nos restaurantes, depilam e manicuram seus pelos e unhas, limpam seus banheiros, em apartamentos de luxo ou em prédios de escritórios… … São garis, motoristas de ônibus, vendedores ambulantes, vigias noturnos, guardas de trânsito, alguns são bombeiros, muitos são policiais.

Os personagens de Geraldo Maciel têm nomes parecidos com os dos cidadãos nordestinos que agora deixam São Paulo, e voltam para o nordeste. José Nazário, personagem do conto, pede uma passagem para “Solidão”, um “paraíba” acossado por uma saudade intensa da terra, do cheiro do mato, da liberdade e da alegria nunca mais sentida, do ar puro, do canto dos pássaros, do calor do meio dia, do sol a pino.

Ele era só o primeiro da fila de uma multidão que queria o mesmo. Deixar São Paulo, regressar ao nordeste, apossar-se de novo de um naco de vida da infância, tecido de pobreza e de liberdade, tudo junto, feito uma comida simples e conhecida.

A literatura pode fazer isso. Escavar uma situação, aumentar suas cores, ampliar sua natureza, ficcionar sobre a sua realidade. Geraldo Maciel escreveu como se pintasse um quadro grandioso da situação dos nordestinos em São Paulo, e não economizou nas tintas. E agora assistimos a centenas, senão milhares de pessoas regressando ao nordeste, deixando à pressa uma cidade sem água, sem emprego, sem transporte, sem saúde, sem moradia.

E quem ganhará com esse novo êxodo? Certamente não serão esses nordestinos que regressam e que se alimentarão da curta alegria de chegar e rever seus parentes e amigos. Saídos da estrada da pobreza e da desigualdade, permanecerão na mesma trilha das faltas e carecimentos. O capital mundial, este ser invisível, apesar de robusto, é quem de fato ganha com as crises. Deixa de investir no emprego de alto custo, e passa a investir em si mesmo, em paraísos fiscais onde já não há noção de pátria nem de cidadania.

Retorno ao romance de Geraldo Maciel, a ver se Nazário terá um final mais feliz, empurrado ao encontro de sua longínqua Solidão.

(Maciel, Geraldo. Aqui As Noites São Mais Longas, São Paulo, Mombak, 2014, livro em formato digital, da coleção Latitudes, organizada pela escritora Maria Valéria Resende).

Latitudes: Aqui vou eu!

Chegou como um presente de natal antecipado, e já nasceu sob o signo da revolução. Revolução no formato, revolução no pequeno-grande agrupamento que congregou, até mesmo revolução arquitetada do lugar de onde partiu.

Latitude foi mesmo gestada como um ato de ousadia. Ao modo de apanhar pássaros à mão, com a firmeza que lhe é própria, a escritora Maria Valéria Resende chamou os editores e disse: Há que se publicar o que está fora do eixo, literatura brasileira feita à mão livre, sem os ditames do mercado, histórias tecidas na liberdade de se pensar uma literatura de anônimos, compartilhada na toca do pastel, ou mesmo em oficinas literárias organizadas de modo improvisado, em feiras solidárias.

Assim nasceu “Latitudes”, a coleção organizada por Maria Valéria Resende, chancelada pela Editora Monbak de São Paulo, distribuída em modo digital, pelas grandes distribuidoras: Apple, Googleplay, amazon, Livraria Cultura, entre outras.

Inauguram o projeto, cinco escritores nordestinos, eu entre eles. Ronaldo Monte colaborou com “Paixão Insone”, Dora Limeira escreveu “O Beijo de Deus”, Roberto Menezes entregou o seu “Palavras que Devoram Lágrimas”, Geraldo Maciel (in memoriam), contou-nos que “Aqui as noites são mais Longas”. Os meus contos vieram em forma de alerta, quem sabe um poema gritado sob a quilha da brisa do rio, “Já não Há golfinhos no Tejo”.

Já devem ter compreendido, os livros já nasceram sem a interface do papel. Caíram no oceano da cibervia, e sabe-se por quantas mãos já andam a ser palmilhados… Livros digitais, e pensam que não dá o mesmo frio na barriga, a mesma alegria desvairada, quando ficamos sabendo da publicação, dos protocolos de compra, da correria louca em busca do ipad, do kindle, para baixar sua coleção?

Baixei meus cinco livros entre o sábado e o domingo. Deliciei-me ao folhear as obras, e, alegria das alegrias, ler em minha linha braille, os primeiros contos, constatar o primor e a qualidade das publicações, o zelo com que “Latitudes” foi tecida.

Estou feliz. Penso no meu pequeno livro encapsulado em bits e bits, me lembro do conto “A biblioteca de Titã”, conto que eu escrevera num dos sábados do clube do conto da Paraíba, e constato: Todos os contos que estão ali, foram colhidos nessa faina de preparação para o sábado, o clube do conto reunido em alguma esquina improvável, em algum café, na toca do pastel, compartilhando em ânsias, alegrias e silêncios, a escritura de cada um.

“Latitudes” nasce pois no âmago da revolução tecnológica, mas foi toda tecida desse gesto primordial do escritor, de arrancar, do oceano do si mesmo, as histórias que conta.