Já não Há golfinhos no Tejo

Eis que saiu meu mais novo rebento, um livro de contos, em formato digital, ganhando o oceano da cibervia, podendo ser adquirido pela #Amazon, #Apple e #Playlivros! Estou feliz de mais!

Título: Já não Há golfinhos no Tejo, da coleção Latitudes, que reúne cinco escritores nordestinos! Divulgue! Baixe e leia! Critique! Faça mais!ja nao ha golfinhos

Alice no País de Si Mesma

Comprar um livro, desembrulha-lo e começar a ler. Não, não foi propriamente assim que aconteceu. Fui ao lançamento do novo romance de Maria Valéria Resende, na noite do último dia 21 de maio e lá mesmo fiquei sabendo que além do livro em papel foi também publicado um ebook.

Corri pra casa, entrei no www.amazon.com.br, busquei pelo título Quarenta Dias e pronto. O livro despachou-se para o meu ipad e imediatamente mergulhei no mundo de Alice, surpreendente, simples e complexo ao mesmo tempo, o novo mundo de uma Alice despejada à força de João Pessoa para Porto Alegre, um mundo insuspeitado entre as dobras de uma cidade, a abrigar dores, cansaços, solidariedades de ocasião, histórias de sofrimentos de mãe a fazer liga com os seus relacionamentos.

Ainda não acabei a leitura. Resisto em abocanhar a história de um sorvo, vou lendo de vagar, parando em alguma esquina improvável, querendo e não querendo antecipar o final que Valéria destinará às andanças de Alice.

Alice, de que argamassa Valéria a tece? De que liames é feita essa planta humana, resistente ao sol, à chuva, ao frio de Porto Alegre, aos sonhos maus, dentro do apartamento claro, aos bons sonhos, sob alguma arcada, enfestada de gente andarilha como ela?

Rebeldia. Terna rebeldia. Este é o cimento de que é feita Alice. Inconformada com os desígnios que lhe roubam de assalto a liberdade, ela foge do mundo organizado e uniforme, e, ao modo de uma bengala, encontra uma perda, uma mãe, um vago nome de um filho nordestino perdido.

Alice foge, levando consigo o vazio, simulado por uma sala sem móveis, um telefone a tocar, sem ninguém para o atender.

Valéria sabe que Alice não precisará de muito. Um caderno em branco, grosso, um velho caderno com a Barbie na capa, servindo como a sua espécie de ponte entre o país de si mesma e o mundo, vasto mundo.

Leva consigo o desassossego, fala interior, profusa, tantas vezes tocando em cordas de sonhos e angústias tão próprias de cada um de nós, escrita

que me tomou de assalto, os quarenta dias de Alice, invadindo meus intervalos de tempo nessa minha semana de fim de maio, os quarenta dias de Alice transbordando para além dos meus afazeres, os quarenta dias de Alice espraiando-se pela minha noite, esse monólogo escrito em um caderno grosso, velho, falando comigo em toda a sua profusão de vozes.

Sem complacência alguma, Valéria Resende, com sua mão firme, empresta ao mundo de Alice a sua magistral narrativa, e, ao modo de uma diretora oculta por entre as cortinas, vai lhe dando leves toques no ombro, alguns empurrões, para a deixar solta, sozinha, a fazer suas alianças no acaso das esquinas, das vielas, das arcadas, a buscar um lugar onde descansar a cabeça em um banco de hospital.

Quem sai ganhando é o leitor, irremediavelmente preso ao passo dessa andarilha, aos seus encontros e desencontros, a vasculhar lugares improváveis dentro da cidade.

E mais não direi, porque ainda não li tudo, e quero encostar agora mesmo o meu passo ao passo de Alice.

 

(Este post será publicado amanhã, em minha coluna impressa do Jornal A União)

Minha Despedida de Saramago

Que silêncio é este que habita à  casa de Pilar? E do lado de fora, que falas são estas do mar d’Espanha,ressaibradas por essa vaga de tristeza?

Somente os milhares de livros, nas suas estantes, ruminam a inércia e o peso das palavras, inventariam fórmulas, arqueiam-se sob o volume de todos os nomes dos muitos romances inacabados, pelas intermitências da vida.

No frio da madrugada, nenhuma nesga de tempo para vigiar o seu memorial do convento, grande obra lavrada pela pá, cimentada pela palavra. Não será na jangada de pedra que ele se libertará da sua quilha de respirar, tampouco haverá tempo e vontade para uma última inspeção à caverna, nenhum vislumbre de desespero por não ter podido assentar um ponto final no seu ensaio sobre a cegueira do mundo.

Tão longe já, uma houtra madrugada brumosa, quando o almoáden cego ergueu-se até a montanha, acordou os seus para a oração, riscando na pedra as primeiras sílabas da história do cerco de Lisboa, e, sem o saber, anunciando de antemão,antigas e futuras  histórias de tantos outros cercos, tantas prisões, inquisições, tantos caminhos alinhavados, como se adivinhasse já, as múltiplas pontas do novelo azul de Maria de Guavaíra.

Não será de blimunda, a última lembrança que lhe acudirá,nessa breve agonia que já lhe toma de assalto o fôlego, os sonhos, o vago desejo de acordar e conferir no antigo relógio, a hora exata do princípio do seu amor.  Entre um e outro combate de células fatigadas, incofmormadas, lembra-se de uma das suas mais belas narrativas de morte,e sabe que morrer é isso, o esforço supremo da vida por querer reter aquele que aqui já não quer estar.

Não vai conferir tampouco a escrita do seu Evangelho, espalhada aqui e além, por todas as suasnarrativas, onde falaram com a mesma veemência, as formigas, os camponeses, os poetas, as mulheres à dias, os elefantes, as invernias a engrossarem a fala do Tejo.

Levantado do chão, permite-se uma vaga saudade do seu cobertor, da voz ciciada de Pilar, do ritual de final de tarde, onde se deixava ficar pacientemente a alimentar e conversar com seus animais.

E quando Joana Carda riscar o chão com a sua vara de tordilho, quando os cães de Cerbère começarem a latir, o mar d”Espanha, encapelado, bramirá sua saudade daqueles olhos inquiridores, daquelas mãos incansáveis na sua faina de cinzelar a força e a riqueza das suas idéias.

“A Fórmula de Deus”

Acabei de ler ontem, “A Fórmula de Deus, de José Rodrigues dos Santos. Como havia um mail de contato, decidi apresentar ao autor minhas primeiras impressões dessa viagem literária. Surpreendida e grata, reproduzo aqui minha carta e a réplica do próprio José Rodrigues.

 

Caro José rodrigues.

Em princípio queria agradecer-lhe pelo vigoroso romance. Acho que sua escritura foi sobretudo um ato de coragem. Traduzir teorias científicas de alta complexidade

em uma narrativa ficcional poderia ter dado errado, e não deu. Preservou-se a qualidade da teoria, ratificou-se a importância da sua divulgação, sem entretanto

perder-se a qualidade do romance em si.

tenho lido muito sobre todas essas questões, limitando-me entretanto às traduções em português, das obras de Michio Kaku, Pau Davies e outros teóricos desta

linha. O seu romance despertou em mim um misto de sensações diversas. Descrevo-as aqui livremente, para não perder a “primeiridade” das impressões, se

é que isto ainda seja possível.

Fiquei com um amargor na boca, uma espécie de sensação de que de fato caminhamos inexoravelmente rumo à uma evolução, a um fim teleológico. E porque me

amarga a boca? Porque pressinto que por agora, a vida é um instrumento desse caminho. Ou seja, nossa geração, e as gerações mais próximas num futuro, provavelmente

são instrumentos dessa viagem cíclica, mas não conheceremos este estágio final, sequer conheceremos estádios diversos precedentes.

Como se ocupássemos nosso ponto determinado nesse trem cósmico, nosso ponto determinado e imprescindível para que a aventura da criação da inteligência

não malogre. Mas com esta consciência transitória que agora temos, ínfimo suspiro da inteligência maior, não provaremos da aventura final. O que me diz?

Por outro lado, experimento um sentimento de quase regozijo por fazer parte disso, dessa aventura cósmica, ainda que o meu lugar pareça ínfimo. Não é contraditório?

 

acabada a leitura, senti vontade de descer do sétimo andar do meu prédio e tocar a terra, essa terra que tanto amo, experimentar em minhas próprias mãos,

suas fibras, sua tecedura de átomos. Acariciei os meus braços, e sorri ante à idéia de ser eu um conglomerado dos mesmos átomos que participaram da criação

inicial.

Muitas perguntas ficam aqui encapsuladas, mas um vívido agradecimento por tudo o que escreveu.

Joana Belarmino

 

Cara Joana,

Muito obrigado pelo seu amável e-mail.

Ainda bem que gostou do romance. Não me parece que me tenha colocado qualquer pergunta, mas o que fez foram sobretudo reflexões. E, a não saber que venhamos

a descobrir alguma coisa que o contrarie (o que é bem natural), parece-me que as suas reflexões reflectem exactamente o pouco que a ciência sabe sobre

o sentido da vida.

Um abraço do

José Rodrigues dos Santos

A Fórmula de Deus, Editora Gradiva, 2006.

“O Sétimo Selo”

Saí da leitura de “O Sétimo Selo”, último romance de José rodrigues dos Santos, munida com duas certezas: O escritor de “A Fórmula de Deus”,  tem um longo e bem sucedido caminho de criatividade a percorrer, situando-se entre aqueles escritores que foram aguilhoados pela pontada do inconformismo,  da denúncia, da pesquisa e da perquirição.

A segunda certeza, eu a partilho com o próprio José rodrigues dos Santos. O futuro da humanidade, ou, como eu gosto de dizer aos meus alunos de jornalismo, o futuro dos seres de carbono será sombrio.

“O Sétimo Selo” exibe o meticuloso trabalho do jornalista José Rodrigues dos Santos. O traço do escritor é leve, muitas vezes quase coloquial, repetindo-se aqui o exercício de “A Fórmula de Deus”, onde o autor traz para a linguagem comum, os grandes dilemas da ciência, das religiões, do esoterismo e das origens da vida.

Nos reencontramos com Tomás Noronha, que era também o personagem principal de “A Fórmula de Deus”, que na sua argúcia de criptoanalista, desvenda logo uma mensagem codificada, e, sem o saber, coloca os gangsters das indústrias petrolíferas no encalço dos cientistas que trabalham na busca da descoberta de uma fonte de energia alternativa que venha substituir o ouro negro.

José Rodrigues não perde tempo com os detalhes do trabalho criptoanalítico. De pronto, envolve o leitor nas intrincadas malhas da indústria petrolífera mundial, mostrando que, seja pela via do ganancioso capitalismo neoliberal, seja pela via das políticas desenvolvimentistas dos vários países do mundo, nosso futuro está engessado pelo sustentáculo desse modelo energético de sustentação da economia, ou seja, o uso do petróleo como energia fundamental.

Alimentado por laboriosa pesquisa documental, e com leves pinceladas de uma escrita exata, substantiva, o autor nos mostra a verdade que a grande imprensa sequer ousa tocar. Na maioria dos países produtores/exportadores de petróleo, a produção alcançou um pico, o que significa dizer que caminha inexoravelmente para o esgotamento.

O trabalho de perquirição de José Rodrigues vai mais longe. Nos apresenta o dilema para o qual nos empurra o aquecimento global, claramente forjado pela ação humana. E crava diante de nós, perguntas simples, que só têm merecido a indiferença da política e da economia mundial, e mesmo a indiferença da responsabilidade pessoal de cada um, obscurecida pela busca do consumo e do conforto fácil. Quem vai pagar a conta do aquecimento global? Para onde nos empurrará o planeta, em seu quente desequilíbrio?

O tema da velhice humana, é mais uma linha aguda e sombria no romance de José Rodrigues. Um ícone do próprio envelhecimento da humanidade, presa num gargalo  irracional, a cultivar seus dogmas, a endeusar seus carros de luxo, indiferente ao safanão, à parada breve, numa esquina qualquer de um mundo que tende a descambar, irremediavelmente.

O Sétimo Selo

José Rodrigues dos Santos

Gradiva, 2007.

As Mulheres de Alice Munro

Instigada pelas notícias televisivas e pela conversação nas redes sociais, fui folhear a obra de Alice Munro, escritora canadense Premio Nobel de literatura. Comprovei, à primeira página, que a obra da escritora é daquelas que não se folheiam.

Você começa a ler um dos seus contos, e de imediato é capturada pela força da narrativa, de pronto acha-se  enredada na teia dos acontecimentos, tocada pela vividez das paisagens, o cheiro da grama, o impacto da água gelada, a suave quietude do final do dia, o assombro (ou seria encantamento)? pelo que a sua narrativa pode inventar, do meio do nevoeiro.

Não, a obra de alice Munro não é para folheadores. A sua narrativa pede um leitor atento, cingido ao seu traço firme, leitor que escave com ela armários e gavetas,margens de rios cobertas de neve.  Pede uma leitora meticulosa, que planeje ao pé mesmo do texto ainda por ser lido, os gestos para o crime imprevisto, a fuga repentina, uma leitora que no ato mesmo de se cumprir o ápice, suspenda o golpe, volte atrás, e recomece com a escritora, um outro modo possível de narrar.

Fico imaginando as perguntas inoportunas que ela já deve ter ouvido dos jornalistas: – Quanto tempo leva para escrever um conto? Da onde vem a sua inspiração?

A obra de Alice Munro, frase à frase, é uma construção em perspectiva do mundo e do espírito humano. Nenhum verbo, nenhum adjetivo, nenhum advérbio fora de tempo e de lugar. Dando voz aos seus personagens, usando a sua narrativa para lhes criar a liberdade de habitarem as estórias, escreve sobre a sua terra, sobre pequenas vilas e cidades do Canadá, mas é como se dali, do seu pequeno jardim, arrancasse verdades universais, como se falasse de pessoas como eu e você, como se de repente adivinhasse aquele pesadelo indecente da noite passada, que a fez acordar, alagada em suor e desejo.

Do primeiro ao último conto, da primeira à última frase de cada conto, a autora lhe entrega, de modo pródigo, uma narrativa magistral, e lhe deixa assombrada, por esse encontro mágico,  por esse reconhecimento, por esse como acender de uma luz, por  essa comunhão.

Alice Munro não empresta às suas mulheres narradas, nenhum adereço, além da sua feminilidade. Essa feminilidade entretecida de força e fragilidade, de beleza e juventude, de velhice sóbria, raiada por uma discreta, e por isso mesmo, absoluta solidão.

Juliet, Enid, Kath e Sonje,esses e tantos outros nomes emprestam-se às personagens de Alice Munro,dão corpo aos dramas, aos desacertos, encontros e desencontros, em tramas habilidosamente construídas, de modo a nos entregar, para cada conto, um final imprevisível e muitas vezes desnorteantemente simples. Ler alice Munro é um exercício que nos faz pensar na literatura, Como essa espécie de vereda, essa fenda amaldiçoadamente abençoada, por onde mundos previsíveis e inimagináveis, universos paralelos, tocam-se e renegam-se, ou, milagrosamente se reconciliam.