As vezes, não há como escrever. As mãos travam, as palavras como que se transformam num borrão, o pensamento divaga, as ideias como que se eclipsam, no fundo de um buraco negro, irremediavelmente perdidas.
Sentada diante do computador, com a responsabilidade de lhe dizer algo plausível como uma espada de Dâmocles sobre minha cabeça, tento arranjar as palavras em um conjunto aceitável. Não há mais papel para amarrotar, não há mais o velho caixão de lixo da redação de O Norte, abarrotado dos restos das frases mal sucedidas.
Todas as cronicas deviam ser bonitas. Todas elas deviam narrar o belo, o suave, a vida cotidiana salpicada de alegrias. O domingo, a tarde, o passeio de carro, o chá de bebê.
O domingo, a tarde, o passeio de carro, o chá de bebê.
Essas palavras tolas estão todas sujas de sangue. O sangue que respingou na cara da mulher, interrompendo seu sorriso de satisfação. O sangue que travou a fala dos adultos, enquanto a criança pequena segurava entre os dedos suados, o presente embrulhado em papel colorido.
O domingo, a tarde, o carro crivado de balas, o grito desabrido da mulher, o papel colorido como uma denúncia viva de que todas as cronicas são mal sucedidas agora.
Como escrever? Como aguentar esse desarranjo de palavras? Vá pedir explicações à morte, me diz uma ideia tola,sem nexo nem propósito. A morte? A morte não pode mais abrigar culpas. A morte, aquela senhora velha, seca, alta e determinada,essa senhora morte não passa de uma quimera.
A morte de verdade é uma grande máquina de extermínio. Uma máquina poderosa, ocupada com sua limpa, nos socavões, nos morros, nas periferias, nas esquinas de bares sórdidos, nos assentamentos, nas rodovias,nos povoados distantes onde vivem os indígenas.
As vezes a morte é lacõnica, outras porém, desaba a gritar seus estampidos. Oitenta. Oitenta estampidos de fuzil.
Oitenta estampidos de fuzil, e somente depois é que a morte perguntou-se, entre o riso demente e o barulho de represar das armas: Por que tantos tiros? Precisaríamos de tudo isso?
A cronica de Evaldo era bonita. Evaldo trabalhava duro, e depois, tocava o seu cavaquinho junto com os amigos. No trabalho ele era o segurança. Na hora da música Evaldo virava Manduca.
Na cronica de Evaldo, o domingo era da família. Do filho pequeno. Da felicidade simples de quem se sente bem com aquilo que tem.
Oitenta estampidos, oitenta palavras de chumbo, eis no que se transformou a cronica de Evaldo.A beleza do domingo fuzilada, sem dó, sem piedade, um pelotão do exército brasileiro destilando seu ódio contra um homem negro e sua família. É o que há para hoje, queridos leitores. Uma cronica suja de sangue de um inocente.
(Este post foi publicado ontem em minha coluna do Jornal A União(