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Mensagem de Uma Laranja Pocã

Hoje recebi um e-mail de uma laranja pocã. Foi assim: Recebi minhas frutas das compras de sexta-feira, e, depois de higienizar todas, resolvi me sentar para comer uma laranja pocã.

Estranhei que ela se apresentasse com uma casca muito mole, mas sei que essa característica é própria das laranjas pocã. E antes que você pense que laranjas pocã usam banda larga, deixe eu lhe explicar:

O software das laranjas pocã é menos convencional. Elas não precisam de provedores. O seu software envolve duas rotinas simples: Descascar/comer.

Pois bem, descasquei a fruta, e logo ao primeiro gomo, apareceu a mensagem, numa cor cinza: “Hoje não haverá suco”.

Decodificar um mail de uma laranja pocã é simples. Você vai decifrando as sílabas por entre a língua e os dentes.

Decifrei a mensagem e pensei otimista: O suco virá nos próximos gomos. Mas qual! Em todos os gomos, a mesma mensagem se apresentou, em sua cor cinza:”hoje não haverá suco”!

No começo eu quis protestar, mas aos poucos, apossou-se de mim uma tristeza resignada. Num planeta onde não temos cuidado com nossas florestas, com nosssos rios; num planeta onde nossos oceanos são verdadeiros monturos gigantescos de plásticos e todo tipo de poluição; num planeta onde bifes suculentos são forjados numa indústria cruel e desumana; num planeta onde todos os tipos de substâncias químicas ameaçam a vida; num planeta onde o egoísmo é a principal forma de convivência entre os humanos, nesse planeta, as laranjas pocã podem revoltar-se, podem nos negar seu suco saboroso, podem nos mandar e-mails telegráficos, e-mails redundantes,numa espécie de alerta para o que estamos fazendo com nossa mãe Gaia.

Em cada gomo, li a mensagem da laranja pocã, e numa reverência à sua casca rugosa, lhe pedi perdão. Lhe pedi perdão e agradeci pela mensagem. Emgoli o seco daqueles gomos e vim aqui, contar isso a você.

A Lista de Janot: Uma Narrativa Nova para uma Sangria antiga

Finalmente saiu a primeira lista de Janot, na última terça-feira, e, como se fora os ecos do primeiro terremoto maior, continuam sendo divulgadas outras pequenas listas, dando-se curso a um processo que o judiciário chama de acepcia, enquanto o parlamento vive dias de susto, e a sociedade ora atônita, ora perplexa, não sabe o que dizer da sucessão vertiginosa dos escândalos cobertos pela mídia.

Duas questões precisam ser formuladas. Por que a mídia trata a corrupção da política como um fato novo? E, na esteira desta, por que a lava jato perdeu seu foco, o Partido dos Trabalhadores, os ex-presidentes Lula e Dilma, e transbordou para todo o sistema político?

Quero inicialmente falar sobre o comportamento da mídia. Os governos anteriores aos liderados pelo Partido dos Trabalhadores viviam num céu de brigadeiro. A corrupção era a moeda das relações da política, entretanto, empresários e classe política quase nunca eram importunados pelas impertinências midiáticas. Pequenas rusgas, conflitos passageiros, e, o arquivamento de denúncias, faziam com que se vivesse em paz, na república Sarney, na República do príncipe FHC.

Os governos do PT, que como todos os governos pós-diretas, eram governos de coalizão, entraram em cena, e mergulharam fundo no sistema corrupto da política. A mídia encontrou seu bordão predileto. Instalada no Palácio do Planalto, agia a maior quadrilha de corruptos, protagonizando o maior escândalo político da história brasileira.

Não se salvava ninguém da ala petista, sendo Lula e Dilma, os mandatários supremos da ladroagem. A narrativa fabulosa deu tão certo, que a presidenta foi deposta, e, por artes de retórica, santificou-se o mandato do vice presidente, alçado ao cargo máximo à custa de zero votos.

Mas, a fábula desmoronou-se. A verdade represada venceu a retórica e a lama dos propinodutos mostrou-se como realmente sempre foi, um ciclo perene de décadas e décadas, irradiando para todos os partidos.

Por que terá a lava jato perdido o foco? Por que a lama transbordou? Por que os filtros se desarrolharam? Só posso tentar responder à essa questão recorrendo à história, ao debate teórico. Ao longo da história recente do mundo, o neoliberalismo tem atuado no sentido de realinhar países que minimamente buscaram fortalecer a democracia e os direitos sociais dos cidadãos. Com todos os erros que pusermos na conta dos governos do PT, é certo que eles aprimoraram o processo democrático e ampliaram o rol dos direitos civis e sociais dos cidadãos. O primeiro golpe visava, pois, a liquidação do partido. O segundo golpe, em curso na atualidade, visa aniquilar a classe política, para que o país, inteiramente destroçado, possa ser reconduzido aos trilhos do capital neoliberal. As listas de Janot ainda soltarão sua infecção, mas, habilmente são torcidas as roscas e polcas que ajustarão a nova onda neoliberal. A mídia fará sua parte. Jornalismo declaratório e raso, sem veios com a história e a memória da sociedade dos últimos cinquenta anos.

Penso no que disse Chomsky, no primoroso documentário Requiém Para um Sonho Americano. A política, com P maiúsculo, a política dos cidadãos, aquela que de fato transforma a realidade, é feita de pequenos e grandes gestos, da indignação e da luta dos coletivos. O neoliberalismo pode ser perverso, pode minar o sonho dos cidadãos, mas pode ser também a oportunidade para que o povo tome nas mãos o destino que quer construir, com movimento, com luta, com coragem de protestar.

(Este post será publicado amanhã, em minha coluna impressa do Jornal A União).

Um Tímido Pedido de Desculpas para Meu Carneiro Morto

Eu tinha um carneiro. Ele não estava preso numa caixa, como o do Pequeno Príncipe, mas vivia feliz, correndo pelos pastos, subindo as encostas, bebendo a água fresca da chuva guardada nos tanques de pedra.

Meu carneiro cresceu, e um dia meu pai decidiu transformá-lo no nosso ensopado de almoço.

Menina pequena, nos meus seis anos, só entendi a gravidade daquilo quando vi o carneiro preso ao mastro e escutei seus balidos desesperados.

Naquela hora, com uma dor intensa no coração, compreendi que eu nada poderia fazer. Escutei a primeira pancada desferida contra sua tenra cabeça, escutei seu grito de desespero e corri dali. E entre soluços, disse a mim mesma que eu não comeria naquele dia, que não provaria um pedaço sequer da carne do meu carneiro.

Na hora do almoço, promessa completamente esquecida, provei deliciada um pedaço daquela carne tenra e perfumada, quando meu irmão mais velho me lembrou o gosto da tragédia.

– Então, que gosto tem o teu carneiro?

Larguei a colher a meio, entre a boca e o prato, pensei um pouco, e, rendida ao cheiro delicioso, comi cada pedaço daquela carne.

Nos últimos tempos tenho pensado naquele episódio, na dor que senti, e na relação tão frágil com aquele animal, que meu pai dizia que era meu, relação que só teve seu ápice quando já não havia mais carneiro, senão um pouco de ensopado no meu prato de menina pequena.

Cinquenta anos separada daquele episódio infantil, e, há pouco mais de dois meses aderi ao veganismo. Foi uma decisão tomada sem pensar muito, sem planejamento, mas, na primeira semana, já sentia os benefícios de ser vegana. Eu tinha recuperado o prazer de comer, que havia perdido já na infância, mas depois eu conto como isso aconteceu, e, acreditem, não foi por causa do meu carneiro.

Pois bem, na primeira semana, eu havia recuperado o prazer de comer, e mais, estava gostando de preparar minha própria refeição.

No primeiro mês eu já me sentia mais leve, mais disposta, e, se mantinha a alegria da preparação e da degustação.

Há algo de revolucionário no ser vegano. Em alguma medida, você desaparafusa uma maquinaria de escolhas erradas, de rotinas erradas, uma maquinaria que vai aos poucos destruindo o planeta, agravando os problemas hídricos, climáticos, de saúde, tanto da terra quanto de você próprio.

Há algo de criativo também. O não comer carne e derivados te obriga a conhecer um mundo vegetal que estava completamente ausente das suas refeições. O meu dicionário de sabores já cresceu tanto nesses dois meses, que essa primeira crônica sobre isso, é uma homenagem ao meu carneiro, e ainda um tímido pedido de desculpa, embrulhado em ramos verdes de saudade e de compaixão.