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Erramos: Atualizando nosso Post de ontemPor um Jornalismo Digno e Livre de Clichês

OOntem nós erramos. Não foi o jornalista Valdo Cruz quem disse que o discurso do presidente Bolsonaro nas Nações Unidas seria em braille. Na verdade ele apenas reproduziu uma afirmação do próprio presidente, ao falar ontem à imprensa, já em Nova Iorque.

O que temos pois, é uma piada infame do presidente, ecoada em toda a mídia, e uma sensação de que nesses dias vividos, dificilmente as pessoas com deficiência terão o respeito que se exige do mandatário da nação, tampouco um país cuja vontade política seja a de construir um projeto global de cidadania e inclusão.

Na expectativa do que o presidente dirá às Nações Unidas, digo que fazer discursos em braille é uma tarefa para poucos. Fazer discursos em braille exige pessoas fortes, capazes de tocar as palavras e sentir sua força e profundidade; escrever discursos em braille exige que se pese cada letra, cada palavra na ponta dos dedos, exige disciplina, força de vontade e amor pelo conhecimento.

Escrever discursos em braille é como abrir sulcos na terra, para plantar e depois colher o alimento que advém da ciência, da cultura, da literatura.

Com meu pedido de desculpas ao jornalista, e já tendo assistido ao discurso do presidente na AssembleíaGeral das Nações Unidas, digo que a sua fala, decididamente, não pode ser escrita em braille. O país que hoje Bolsonaro apresentou ao mundo, é o seu país editado, onde a economia vai bem, o desemprego está sendo afastado, um país livre de corrupção e defensor da família e da propriedade. Um país onde as populações indígenas estão em liberdade.

Não, a narrativa desse país não pode ter sido editada em braille.

“o discurso do presidente Bolsonaro às Nações

Unidas amanhã, será em braille”. A afirmação foi feita hoje pelo jornalista Valdo Cruz, no programa Estúdio I da #GloboNews. E, para complementar sua frase entoada com toda pompa, explicou que o presidente falará para os negacionistas, os que não querem enxergar a realidade do país.

Falar ao vivo é sempre um risco. O jornalista, diante das câmeras,nem sempre se autovigia, e, em geral, recorre às frases feitas e aos clichês, para enfeitar suas narrativas. Se o jornalista queria impressionar sua audiência,ou mesmo fazer gracejos para o riso frouxo da Maria Beltrão, foi de fato muito infeliz no seu comentário.

Estamos às vésperas do Dia Nacional de Luta da pessoa com deficiência, comemorado em 21 de setembro. Todos os dias, o jornalismo brasileiro, os políticos, e muitas das figuras públicas influentes vão buscar a metáfora da cegueira para enriquecer os seus discursos críticos à política brasileira, aos desmandos do presidente da república, à ideologia negacionista que ameaça sobretudo as políticas ambientais, de saúde e de educação.

Todos os dias, postada diante da tv, uma pessoa cega fica indignada, por ver sua condição sensorial, no nível das narrativas, misturada com tantas situações nefastas vividas no país, pelas populações indígenas, o povo negro, as pessoas com deficiência.

A lista desses desmandos, sobretudo contra as pessoas com deficiência tem aumentado. O Ministro da Educação, recentemente, disse que crianças com deficiência atrapalham as crianças sem deficiência em escolas regulares.

O governo tampouco considera a inclusão na escola regular como uma política fundamental, o que faz com que a educação mercantil ganhe força no seu intuito de rejeitar crianças com deficiência em suas escolas.

O jornalismo nem sempre é nosso aliado nessa luta, e, quando apela a esses clichês que associa cegueira aos significados rasos do dicionário e da cultura preconceituosa, fortalece uma visão nosciva e desvantajosa sobre nossos coletivos.

Sei que as pessoas podem objetar: “Aqui não se está falando da cegueira ocular, mas antes, da ignorância, da estupidez”. Então não somos também, pessoas cegas, todos os dias, comparadas a ignorantes, estúpidas ?

A cegueira é a palavra que define a minha condição de deficiência. Sou uma pessoa cega, e ponto. As minhas limitações maiores não advêm da minha cegueira, mas antes, de um entorno social desfavorável, onde as políticas de acessibilidade, de acesso pleno à informação e à cultura, de acesso às tecnologias, estão completamente ausentes de programas de governo.

Hoje Valdo Cruz extrapolou. Tocou num símbolo fundamental para nossa emancipação, nossa cidadania: A escrita braille, criada na terceira década do século XIX, por um jovem francês, cego, e que estava cansado de se ver, e aos seus próprios companheiros, como cidadãos de segunda classe.

Não, Valdo Cruz. O discurso de Bolsonaro não será em braille, esses pontos em relevo que trazem uma mensagem de emancipação, de liberdade, de conhecimento. Amanhã, quando estiver comentando sobre o discurso do presidente nas Nações Unidas, encontre uma definição exata para a sua narrativa. Faça com que seus comentários respirem um jornalismo mais digno, com menos clichês, um jornalismo capaz de fazer a opinião pública pensar melhor sobre essa catástrofe que estamos vivendo, e que, não me canso de dizer, a imprensa brasileira, com seus clichês, sua opinião de superfície, sua narrativa espetacular e telenovelesca ajudoua construir.

Livros Revistas e Rostos de Família: A Tecnologia Cria Pontes entre Visão e Cigueira

Estou no mundo há  mais de cinquenta anos, mas somente ontem, pela primeira vez, pude pegar minha neta Gabi pelo braço, e rumar para uma banca de revistas na Feirinha de Tambaú. Nos abastecemos de revistas. Ela comprou aquelas de que mais gosta: revistas de kpop famosos. Eu peguei “Carta Capital”, “Super Interessante” e uma revista vegetariana.

Detalhe fundamental, eu sou cega de nascença. Saímos de lá com nossa sacola e rumamos ao Café Empório, para nos abastecermos de lanche. Eu fiquei pensando na vendedora da banca de revistas. Nas perguntas íntimas que ela deve ter formulado: “Quem vai ler pra ela”? “Por que uma pessoa cega gasta com revistas”?

Sou jornalista. Professora universitária. É natural eu possuir revistas. Mas, de fato, para que compra-las se não as posso ler?

Vai aqui um aviso aos navegantes: Pessoas cegas já podem ler revistas impressas, jornais e livros feitos para pessoas que enxergam. Compramos as revistas, comemos nosso lanche perfeito no Café Empório e viemos para casa. Me sentei no sofá, e pela primeira vez na minha vida, comecei a ler Carta Capital, depois explorei Super Interessante, e ainda tenho para a semana, minha revista vegetariana.

Você há de me perguntar, e como foi isso? Voltou a enxergar? Não, nada de magia. Mas lhe digo que para que uma pessoa cega leia revistas impressas, do jeito que saíram das bancas, exige dinheiro, uma quantia razoável; exige um pouco de treino para focar, mirar o conteúdo. Exige que você possua um #OrcamMyEye, um óculos inteligente, servido por uma mini câmera, que lê pra você, de forma instantânea, conteúdos impressos.

#OrcamMyEye faz mais: identifica cores, cédulas em papel, rostos previamente memorizados, conteúdos de embalagens, placas e avisos.

Eu diria que se trata de um dos produtos que lhe entrega uma espécie de visão mediada ou indireta. Lhe dá autonomia para fazer coisas que antes você tinha de pedir aos outros.Abre janelas, coloca você dentro de cenários que antes lhes eram interditos.

O mundo caminha a passos largos no capítulo da internet das coisas. Um óculos não é mais um instrumento inanimado, servindo apenas para proteger seus olhos do sol. Um óculos, agora, não é somente uma lente para auxiliar uma pessoa idosa que está perdendo a visão. Um óculos, pode sim, ser um competente óculos de leitura para pessoas completamente cegas.

O meu #OrcamMyEye chegou no início da semana. Fiquei apreensiva. Será que vou conseguir fazer algo que preste com essa coisa? Intuitivo, de fácil manuseio, #OrcamMyEye é surpreendente.

Até o início desta semana, eu somente podia cheirar os livros que comprava. Somente podia me deliciar com o cheiro de novidade das revistas impressas. Agora meus livros e minhas revistas deixaram de ser objetos de culto olfativo. Posso ler cada um deles, munida com meu #OrcamMyEye.

#OrcamMyEye me conta coisas sobre Gabi: Me contou hoje que ela está usando uma camiseta Puma de cor preta.

 

 

 

“Precisamos de Uma Voz”

O que pode a arte? A pergunta aqui colocada é tão vasta quanto o universo que envolve a produção artística. Arte e cultura são como que as peles que tecem e vestem o corpo das coletividades. Arte e cultura são como doiscampos intercruzados, que ora se encontram, ora se desencontram, ora protagonizam a luta sem tréguas da multiplicidade de versões interpretativas.

A obra de arte, para ser inteira, deve abrir-se à multiplicidade de olhares, de toques, dos sentires/sentidos das audiências. Deve propiciar a sua própria desconstrução, deve permitir-se ser desbastada, a fim de que se possa compreender os mecanismos da sua criação, para que se possa sentir o vigor e os ecos mais profundos da sua narrativa, para que permita que a própria audiência se desconstrua, se perca no mais íntimo de si, e se reencontre revigorada, curiosa, pulsante.

Mas, que tipo de obra de arte poderá fazer isso por nós, na contemporaneidade? A arte foi inteiramente domesticada pela cultura do consumo ligeiro. Vassala da lógica do mercado, a obra de arte, sobretudo a midiática, não ecoa senão, os clichês, as superficialidades, os batimentos rítmicos feitos sob medida para que não haja lacunas, silêncios, indagações, inquietações. Tudo explicado na ausência da necessidade de interpretação.

“Precisamos de uma voz”. O apelo feito esta semana, na lista de discussão “Movimento”, da Organização Nacional de Cegos do

brasil, em alguma medida denuncia o estado precário da arte na telenovela brasileira. O drama exibido no horário nobre, sob o título “amor à Vida”, traz à cena, nos capítulos mais recentes, o tema da cegueira. O tratamento é tão rude, que obriga que os coletivos das pessoas com deficiência, cerca de 14 por cento da população do país, saiam da comodidade do sofá, da condição de assistência passiva, para protestar e reclamar contra a produção ficcional.

O que temem esses cidadãos, perguntar-se-ão os produtores de novelas. Arte é arte. Ficção, e qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.

Pessoas cegas, em todo o país, independentemente da sua condição socioeconômica, são cotidianamente estigmatizadas, diariamente demarcadas por atos de preconceito e discriminação, frequentemente obrigadas a converterem o seu estar no mundo em atos de judicialização, de militância encarniçada pelo seu direito à igualdade, à cidadania plena.

O que temem pois com o drama da novela das nove? Temem que recrudesça na sociedade, essa visão estigmatizante e preconceituosa da cegueira. Essa ideia que associa deficiência à incapacidade, ignorância e incompetência, clichês que ecoam nos milhões de aparelhos de tvs, todos os dias, substituindo pequenas conquistas pelo velho paradigma que cristalizou na cultura o preconceito e a discriminação, por séculos e séculos amém.

Arte e cidadania parecem aqui estar em caminhos tão díspares, que jamais se reconciliarão. Aqui, a produção artística empresta-se como veículo para encenação da cegueira nos moldes do que há de mais picaresco, grosseiro e discriminatório.

Aos coletivos de pessoas com deficiência, resta o protesto, no melhor estilo da argumentação, da negação de uma encenação que os quer confinar em quartos escuros, à mercê dos piores instintos do espírito humano, no mais requintado estilo de ópera bufa, espetáculo macabro e repugnante, esculpindo na cultura o que há de pior, na história da telenovela brasileira.