Foi Golpe

 

 

A manchete que os jornalistas da grande mídia não ousam formular, aparece e grita dentro da sua narrativa. No dia 31 de agosto de 2016,consumou-se mais um golpe de estado, chancelado pelo parlamento, pela justiça e pelas organizações de imprensa do país, retirando do poder, a quarta presidenta eleita pelo voto popular.

O desfecho surpreendente daquela votação, separando o julgamento dos senadores em dois momentos distintos, revelou exatamente o que a oposição apregoara até à exaustão, no decorrer do processo. A presidenta foi afastada por artimanhas retóricas e processuais, não havia crime de responsabilidade, não havia dolo ou má fé. Por que então torná-la inabilitada para as funções públicas?

Quando brandiu a constituição, quando apelou para a linguagem coloquial, própria da sua região, para apregoar, “Depois da queda, não se pode escoicear”, o presidente do senado, Renan Calheiros encontrava um sinônimo primoroso para não mencionar o golpe: Queda, derrubada.

Alguns minutos após o golpe, Michel Temer, o presidente indireto, falou aos seus ministros, reclamando da divisão na sua base e dizendo que a suspenção da inabilitação poderia ter sido um gesto claro de boa vontade do parlamento. Nem naquela hora o presidente indireto disse a verdade. Ela não poderia mesmo ser dita. A suspenção da inabilitação era um pequeno suspiro de alívio, uma pequena pílula de destensionamento para a consciência de políticos que até o início de março faziam parte do governo da presidenta deposta, e que, nos últimos meses, utilizaram o melhor dos seus esforços para conspirar, negociar, consolidar o golpe que se acelerava dentro do parlamento.

Uma segunda recomendação, daquela curta fala do presidente, antes de embarcar para a China, merece o destaque da nossa coluna. “Divulguem o governo. Dou-lhes toda a liberdade para falar à imprensa, mas divulguem o governo”, disse ele, ainda que com outras palavras. O presidente indireto sempre soube, e sabe-o ainda agora, o governo não poderá prosperar sem o apoio da grande mídia.

A grande mídia aliás, escreveu nesse processo, um dos mais tristes capítulos da sua história recente. Cinquenta e dois anos antes, constituía-se no braço principal do golpe de 1964, construindo e difundindo para a sociedade, a narrativa da revolução, da mudança, do país novo.

Novamente colaborou grandemente agora, construindo e inflacionando manchetes negativas contra a presidenta e seu governo, agendando e convocando para manifestações, mantendo como pauta consonante, onipresente, ubíqua e monotemática, a crítica incisiva em favor da desqualificação da presidenta.

E prosseguirá agora, no esforço de valorizar o “plano Michel”, dispondo dos seus ancoras e dos seus horários mais flexíveis em seus canais fechados e em seu jornalismo de revista. E ainda contará com um puxadinho latino americano, via “El Clarín”, em Argentina, e também na imprensa comercial colombiana.

Não me surpreenderei se nas próximas eleições, a maioria da população fugir dos descaminhos da política, e dar vitória ao voto nulo. Penso na sociedade brasileira como um grande trem desgovernado. As elites, os políticos e a grande mídia divorciam-se flagrantemente de um projeto de cidadania. O país retrocede irremediavelmente e o remédio do impeachment é mais um veneno importante nessa derrocada.

O Vigia das Horas

O tempo caminha no seu passo de sempre, recebendo os segundos, os minutos, as horas, na colhedeira dos dias. A mídia, os comentadores, os políticos, em alguma medida, tentam apressar o recolher das horas, à espera de que chegue a segunda-feira, 29 de agosto, e assim seja consumado o terrível plano de impedimento da presidenta Dilma Rousseff.

De fato, a segunda-feira já chegou, nas especulações, nas narrativas, nas predições e profecias. Como a presença de Lula vai interferir na situação da presidenta?  Indaga uma jornalista ciosa do seu dever, articular e desenvolver as táticas de rejeição ao governo afastado, sempre com um sorriso no rosto.

Haverá um peso negativo terrível, apressa-se em responder um comentarista. Lula e sua esposa indiciados pela polícia federal, levarão a Lava Jato para dentro desse último dia do processo de impeachment.

Seria de ingenuidade, de cinismo, ou de malcaratismo  essa frase articulada de maneira quase coloquial, e difundida nos microfones da Globo News?

Indiferentes à uma opinião formada no contraditório, difundido nas redes sociais, os comentadores de mídia prosseguem na sua louvação à necessidade do impeachment, cumprindo com bravura e fidelidade canina, a pauta editorial que lhes é imposta pelos empresários de comunicações do país.

Às perguntas dos jornalistas, que não fazem mais do que anunciar o seu lado, a sua posição, a defesa da sua linha editorial, nuvens de críticas e respostas contraditórias eclodem nas redes sociais.

A Lava Jato sempre esteve dentro do processo de impeachment. Pelo menos quarenta senadores são citados na operação, não fossem as blindagens do judiciário, da mídia e do Supremo.

Um dos maiores operadores dos esquemas de corrupção, que tem juntado, ao longo dos séculos, a política e os empresários, o deputado Eduardo Cunha, ele próprio ainda mantém seu mandato, e age nas sombras, costurando e chuleando essa terrível tecedura do impeachment.

E qual será a influência da imprensa nesse último dia de impedimento? Estouram perguntas do gênero nas redes sociais. Como se portariam os senadores, não houvesse ali a presença das câmeras, dos âncoras, dos jornalistas internacionais, os documentaristas?

Porque é certo que a mídia, com seu poder de monopólio, é o grande braço publicitário do plano de impedimento. Jornalismo como o da Globo News, repetindo diuturnamente os mantras do processo, presta um serviço indispensável para que se obtenha o resultado já apregoado nas suas manchetes: Sessenta, sessenta e um votos a favor do afastamento definitivo da presidenta.

A mídia é o grande vigia dessas horas, do minuto em que cada senador depositará sua máxima nos microfones, quando uma máquina registradora invisível fará a contagem e vibrará, ruidosa ou silenciosamente, em selfs, em cliques, em vinhetas.

Pergunto-me o que farão os jornalistas da Globo News, quando cessar a necessidade do ódio e da rejeição. O que farão eles que nesses últimos anos, somente trabalharam com a plataforma do ódio, do cinismo e da desfaçatez?

Por agora não há como pensar sobre isso. A mídia está plenamente ocupada na vigilância das horas, dos votos, do final feliz para a sua fábula insensata.