O Jornalismo Mínimo e as suas Vítimas

O jornalismo declaratório faz suas vítimas, e elas são muitas. Toda a sociedade distancia-se, ignora ou, em alguns casos, fica indignada com esse tipo de narrativa, que divorcia-se vertiginosamente do ideário clássico que havia pensado a imprensa, os repórteres, a comunicação e a sua capacidade para fortalecer as democracias, harmonizar o tecido da sociedade, compor uma esfera de opinião pública crítica e esclarecida.

É desanimador o desfile de mediocridades na tevê, nos portais online, nos impressos. O modelo mínimo de jornalismo tem suas máximas: Fique o mais distanciado possível do fato. Só diga aquilo que disserem pra você. Apresente números, muitos números, até ao empanturramento, mas se comentar, o faça como se estivesse na mesa da cozinha, debicando o que todo mundo já sabe. Não perturbe o ambiente com investigações próprias, com apurações profundas, com textos autorais. Guarde isso para um blog pessoal, ou para quando for demitido.

Se fizer uma reportagem longa, bombástica, sente-se em cima dela, guarde-a para o “Número Zero”, aquele jornal do romance de mesmo título de Umberto Eco, que estaria ali, sempre pronto para chantagear alguém: Um político, um magnata, um vendedor de petróleo.

Morreu um homem num condomínio em João Pessoa. Fique longe disso. Diga o que se diz sempre nesses casos: Control-c control-v e pronto. “Não se sabe o nome do homem, não se sabe as razões do crime, o que importa é mais esse número flácido, sujo de sangue, caindo na estatística fria da violência”.

Ataque com gás sarin na Síria. Com o rabo do olho, mire o que estão dizendo as agências de notícias mundiais. Só existem quatro grandes agências mundiais. Repita o que elas dizem, papagueie até à exaustão, garanta suas vinte linhas, sem dissonância, sem divergência, que Deus o livre de apuração e aprofundamento!

Ataque terrorista na Rússia? Mire para onde vai o fluxo. Ignore isso. Notinha curta, um box talvez. Quanto vale a morte de cinquenta chineses? Cem africanos? Faça uns cálculos rápidos. A morte de um americano, de um europeu, essas sim, dão manchetes.

Reforma da previdência? Fique do lado de quem lhe paga os salários. Faça propaganda aberta. Ameace os trabalhadores, combata greves, edite passeatas, porque dessa vez os menores números serão a manchete.

Está cobrindo a política? A receita é simples. Coloque o PT nas tragédias. Enfatize isso o dia todo. Acompanhe o fluxo. Invente uma pérola do tipo Cristiana Lôbo que afirma: “De tédio a gente não vai morrer”. Não sabe ela que sua voz, sua narrativa, tem jeito, eco e  cheiro de catacumbas.

A Flor de Lyra

às vezes você vê a sua cidade pelo olhar do outro, o que chega de fora, e se instala aqui como se já tivesse pisado a terra, passeado pelas ruas, esperado em algum umbral, para perguntar sobre onde fica tal rua, o nome de uma flor..

Bernadette Lyra, capixaba, professora de cinema, escritora, chegou em João Pessoa no dia 31 de março, e, ao tocar o solo paraibano, as cordas íntimas da sua genética tocaram com força o seu coração, e como que lhe entregaram o lençol branco e cheiroso da sua avó Amélia, como que lhe abriram de par em par as portadas da terra e lhe disseram, Aqui nasceu sua avó, aqui é também a sua casa.

Foi ver o mar, e, tomou conta de si, a alegria de inventariar a mornidão das águas, e conheceu os ditos da brisa, enfiando seus segredos nas palhas dos coqueiros.

Fotografou sacralidades, tecidas em azulejos antigos, na Igreja de São Francisco. Na casa da Pólvora, viu a faixa do rio Paraíba, marejar nos seus olhos, diques de uma emoção intensa, rompendo-se em mais alegria genuína.

E por toda a cidade, como a lhe dizer bom dia, como a lhe puxar pela mão, como a lhe chamar, dos recantos mais improváveis, Bernadette Lyra viu aquele pequeno cálice branco, nos jardins, nas cercas verdes, na praia, nas entradas dos restaurantes, por entre os gramados da faculdade.

Queria saber o nome da flor, encantada pela sua brancura, admirada pela força da sua presença, impondo-se como delicada notícia sem nome, como cálida saudação, nessa cidade cuja vocação é florescer, entre o mar e o rio.

Seria copo-de-leite? Seria jasmim? Lírio branco? Nos umbrais, esperou pelo nome da flor, mas ninguém sabia. Nos restaurantes, garçons apressados deram-lhe o de sempre, “não sei, senhora”.

Viajou com a promessa de que eu lhe enviaria por sms o nome da flor.

No dia seguinte, intrigada, toquei o cálice da flor, contei suas cinco pétalas macias, aspirei o perfume tão suave que ela tem, de seiva amanhecida, de primavera, tão fugaz, que pode passar despercebido entre os bafos do trânsito da cidade. Retomei a faina de indagar, nos umbrais, nas portadas, nos restaurantes.

Ninguém sabe o nome dessa flor branca, de uma alvura tão intensa que chega a doer nos olhos, nascida de um arbusto vulgar, e que tocou a alma de Bernadette,aguçou sua curiosidade, seguiu-a por toda João Pessoa, como uma espécie de telegrama aberto, e, em alguma medida, indecifrável.

Só damos nomes às coisas que vemos, as coisas que se apossam de nós, e nos invadem com sua presença. Como essa flor branca, florescendo por toda João Pessoa, da qual ninguém sabe o nome.

Por isso decidi chamá-la, a flor de Lyra. A flor de Lyra, esse pequeno poema branco, com suas cinco sílabas, ecoando por todo lado dessa cidade.

(este post será publicado amanhã, em minha coluna impressa do Jornal A União)