Livros Revistas e Rostos de Família: A Tecnologia Cria Pontes entre Visão e Cigueira

Estou no mundo há  mais de cinquenta anos, mas somente ontem, pela primeira vez, pude pegar minha neta Gabi pelo braço, e rumar para uma banca de revistas na Feirinha de Tambaú. Nos abastecemos de revistas. Ela comprou aquelas de que mais gosta: revistas de kpop famosos. Eu peguei “Carta Capital”, “Super Interessante” e uma revista vegetariana.

Detalhe fundamental, eu sou cega de nascença. Saímos de lá com nossa sacola e rumamos ao Café Empório, para nos abastecermos de lanche. Eu fiquei pensando na vendedora da banca de revistas. Nas perguntas íntimas que ela deve ter formulado: “Quem vai ler pra ela”? “Por que uma pessoa cega gasta com revistas”?

Sou jornalista. Professora universitária. É natural eu possuir revistas. Mas, de fato, para que compra-las se não as posso ler?

Vai aqui um aviso aos navegantes: Pessoas cegas já podem ler revistas impressas, jornais e livros feitos para pessoas que enxergam. Compramos as revistas, comemos nosso lanche perfeito no Café Empório e viemos para casa. Me sentei no sofá, e pela primeira vez na minha vida, comecei a ler Carta Capital, depois explorei Super Interessante, e ainda tenho para a semana, minha revista vegetariana.

Você há de me perguntar, e como foi isso? Voltou a enxergar? Não, nada de magia. Mas lhe digo que para que uma pessoa cega leia revistas impressas, do jeito que saíram das bancas, exige dinheiro, uma quantia razoável; exige um pouco de treino para focar, mirar o conteúdo. Exige que você possua um #OrcamMyEye, um óculos inteligente, servido por uma mini câmera, que lê pra você, de forma instantânea, conteúdos impressos.

#OrcamMyEye faz mais: identifica cores, cédulas em papel, rostos previamente memorizados, conteúdos de embalagens, placas e avisos.

Eu diria que se trata de um dos produtos que lhe entrega uma espécie de visão mediada ou indireta. Lhe dá autonomia para fazer coisas que antes você tinha de pedir aos outros.Abre janelas, coloca você dentro de cenários que antes lhes eram interditos.

O mundo caminha a passos largos no capítulo da internet das coisas. Um óculos não é mais um instrumento inanimado, servindo apenas para proteger seus olhos do sol. Um óculos, agora, não é somente uma lente para auxiliar uma pessoa idosa que está perdendo a visão. Um óculos, pode sim, ser um competente óculos de leitura para pessoas completamente cegas.

O meu #OrcamMyEye chegou no início da semana. Fiquei apreensiva. Será que vou conseguir fazer algo que preste com essa coisa? Intuitivo, de fácil manuseio, #OrcamMyEye é surpreendente.

Até o início desta semana, eu somente podia cheirar os livros que comprava. Somente podia me deliciar com o cheiro de novidade das revistas impressas. Agora meus livros e minhas revistas deixaram de ser objetos de culto olfativo. Posso ler cada um deles, munida com meu #OrcamMyEye.

#OrcamMyEye me conta coisas sobre Gabi: Me contou hoje que ela está usando uma camiseta Puma de cor preta.

 

 

 

Minha Despedida de Saramago

Que silêncio é este que habita à  casa de Pilar? E do lado de fora, que falas são estas do mar d’Espanha,ressaibradas por essa vaga de tristeza?

Somente os milhares de livros, nas suas estantes, ruminam a inércia e o peso das palavras, inventariam fórmulas, arqueiam-se sob o volume de todos os nomes dos muitos romances inacabados, pelas intermitências da vida.

No frio da madrugada, nenhuma nesga de tempo para vigiar o seu memorial do convento, grande obra lavrada pela pá, cimentada pela palavra. Não será na jangada de pedra que ele se libertará da sua quilha de respirar, tampouco haverá tempo e vontade para uma última inspeção à caverna, nenhum vislumbre de desespero por não ter podido assentar um ponto final no seu ensaio sobre a cegueira do mundo.

Tão longe já, uma houtra madrugada brumosa, quando o almoáden cego ergueu-se até a montanha, acordou os seus para a oração, riscando na pedra as primeiras sílabas da história do cerco de Lisboa, e, sem o saber, anunciando de antemão,antigas e futuras  histórias de tantos outros cercos, tantas prisões, inquisições, tantos caminhos alinhavados, como se adivinhasse já, as múltiplas pontas do novelo azul de Maria de Guavaíra.

Não será de blimunda, a última lembrança que lhe acudirá,nessa breve agonia que já lhe toma de assalto o fôlego, os sonhos, o vago desejo de acordar e conferir no antigo relógio, a hora exata do princípio do seu amor.  Entre um e outro combate de células fatigadas, incofmormadas, lembra-se de uma das suas mais belas narrativas de morte,e sabe que morrer é isso, o esforço supremo da vida por querer reter aquele que aqui já não quer estar.

Não vai conferir tampouco a escrita do seu Evangelho, espalhada aqui e além, por todas as suasnarrativas, onde falaram com a mesma veemência, as formigas, os camponeses, os poetas, as mulheres à dias, os elefantes, as invernias a engrossarem a fala do Tejo.

Levantado do chão, permite-se uma vaga saudade do seu cobertor, da voz ciciada de Pilar, do ritual de final de tarde, onde se deixava ficar pacientemente a alimentar e conversar com seus animais.

E quando Joana Carda riscar o chão com a sua vara de tordilho, quando os cães de Cerbère começarem a latir, o mar d”Espanha, encapelado, bramirá sua saudade daqueles olhos inquiridores, daquelas mãos incansáveis na sua faina de cinzelar a força e a riqueza das suas idéias.