A Canção do Desespero

 

Na quarta-feira de finados, acordei com uma afirmação peremptória na cabeça: Não, aquele não era o dia dos meus mortos, pessoas do meu afeto que se foram, em dias alternados de anos alternados e que, habitantes agora da minha memória, fazem-me visitas com suas lembranças vívidas, de quando estavam vivos, de quando cumpriam comigo a mesma jornada, respirando o mesmo ar, ocupando a mesma trilha de espaço-tempo.

Liguei a tevê, e de novo me veio à mente a urgência dessa ideia, de que meus mortos não têm nada a ver com esse caminhar da multidão, nos cemitérios, comprando velas e flores, chorando, murmurando preces, arrastando os pés à procura dos túmulos de famosos, gente anônima esquadrinhando a terra à busca da simplicidade das covas dos seus, o desespero estampado nas caras, feito um grito terrível cheio de espanto.

Não sei se de fato os finados precisam de um dia no calendário, quando a morte assumiu de vez o comando das horas, dos minutos, quando todos os dias do ano são dias de afirmação da violência, da crueldade, dos velórios à pressa, quando sequer houve tempo para a perplexidade, a aceitação, e somente o desespero compõe sua sinfonia de uma nota única, agônica e longa.

Desliguei a tevê, contemplei os finados da minha infância. Pessoas que viveram muito, deixaram esse mundo por morte natural, avós e pais cujos filhos, no dia 2 de novembro, acorriam ao cemitério com um ramo de flores frescas, uma oração antiga e lembranças de vidas retas e boas.

Os finados agora são cadáveres jovens, infantis, idosos e adultos, esquartejados, extraídos da vida por balas perdidas, atirados à beira da praia com o último sonho ainda exalando nas peles tenras da infância.

Não se finaram. A maioria deles saiu da vida de supetão, por um estampido, um esquecimento, um incidente banal, um ódio antigo e incontrolável.

Os cadáveres acumulam-se sem identificação, em casas, em cemitérios clandestinos, em laboratórios refrigerados, e a morte, como uma trituradora, vai marcando o ritmo implacável na ampulheta do tempo, um, dois, cem, milhões de mortos.

Senti medo. Imaginei um dia de finados universal, multidões aglomerando-se nos portões dos cemitérios e nas ruas adjacentes, esbracejando, pedindo passagem, um tropel terrível a caminhar, a bramir por piedade, enquanto a morte, irremediavelmente ocupada, ia depositando  sua colheita implacável na bacia do tempo.

Não, esse não é o dia dos meus mortos, nem nunca o será. Em todos os momentos que posso, invento orações para as pessoas do meu afeto que se foram, faço reuniões amenas para lhes contar, numa espécie de ruga do tempo só nossa, as transformações do mundo, o modo como agora nos comunicamos, os planos para o futuro.

Nesses dias, como que cerramos as cortinas para esse espetáculo macabro, para essa longa nota aguda de desespero, que invade sem trégua o viver do nosso tempo.

A Invenção do Futuro

Por esses dias comecei a ler “Vozes de Tchernobil”, da prêmio nobel de Literatura Svetlana aleksiévitch. O livro é como um soco na boca do estômago, e exala a angústia profunda daqueles que foram despatriados sem qualquer aviso, sem preparação, à força de uma explosão.

Leio, e penso no mundo para o qual estamos sendo solapados, um mundo bizarro onde a madrugada empresta seu silêncio e seu lençol de frio para a arte das facas, a explorar a vida dos mais vulneráveis, um mundo onde a festa se desfaz sob a virulência da morte, em seus múltiplos tons de cinza.

Devoro as páginas do livro, tisnadas de tristeza, mas penso sobretudo no meu país, e me vem à mente, com toda a força de uma erosão, a ideia de que também instalou-se aqui uma espécie de Tchernobil, não a partir de uma explosão, mas do modo como Svetlana Aleksiévitch nos descreve, um mal estar, uma sensação de caminharmos para um lugar que ainda não conhecemos, um salto para o que ainda não existe, o desfazimento de um solo de pertencimento, de um conjunto de crenças, nossas mãos vazias, esticadas para o abismo.

Ocupamos uma passarela estreita e desfilamos ao ritmo dos festejos olímpicos, salpicados dos gritos de protesto e do medo insidioso que a todos aflige, um medo daquele que anda a seu lado, com seu casaco esquisito, sua falha dentária, sua inapetência para o sorriso de facebook.

Passo a passo, como se numa segunda tela, assistimos à nossa própria derrocada, enquanto os políticos, os banqueiros, a justiça de plantão, inventam frases de efeito para a fábula midiática a ecoar diuturnamente os presságios envernizados da mentira e da invenção do futuro.

O futuro é o passado reformado. Reforma da previdência, da educação pública, da saúde, do desenvolvimento urbano, da distribuição da água e da energia, da exploração do petróleo, soba cúpula de um estado mínimo, anêmico e cartorial, assinando decretos e medidas provisórias com sua caneta Montblanc.

O futuro inventado, sob a capa do cinismo mal disfarçado da política, acentua as estratégias de evacuação dos mais pobres, de assassinato a sangue frio, dos negros, dos índios, dos homossexuais.

Passo a passo, saltamos para esse lugar estranho, passo a passo, nos apropriamos do nosso próprio Tchernobil.

 

Este post será publicado amanhã, em minha coluna impressa do Jornal A União.

Carta para os Anunnaki

 

Não, não venham. O planeta terra já não é um lugar alegre. A morte já não tem nenhum escrúpulo. Atua em todas as horas do dia, em todos os lugares. As principais vítimas são crianças, adolescentes, jovens negros, pobres.

Homens fogem em velhos navios lacrados, como se fossem caixões levando condenados por doenças infecciosas, e morrem. Morrem de sede e de fome, morrem batendo nas velhas portas dos navios podres, em fronteiras que nunca se abrem.

Morreu Aruna Shanbaug. Não sabm quem é? Eu também só sei dela pelas notícias frias, encapsuladas naquele modelinho técnico: Quem diz o que, a quem, com que efeito. Só sei dela por via do informe da BBC, mas a sua morte dói em mim como uma velha espinha de peixe, lacerando minha garganta.

Aruna Shanbaug viveu 42 anos em coma. Doença genética? Acidente? Perguntarão vocês. Sim, digo eu. Foi um acidente terrível. Aruna Shanbaug foi estuprada no próprio hospital onde trabalhava como enfermeira. O ato foi tão violento que Aruna Shanbaug virou vegetal. Vegetal? Que coisa idiota de se escrever. Aruna Shanbaug deixou de ser aquela pessoa alegre, andando com seus próprios pés, respirando o ar matinal e dormindo à noite sob a colcha dos seus sonhos.

Mulheres não valem mais nada no planeta terra. São estupradas, atiradas em rios, matas, banhadas em ácido e atiradas em agonia em fossas cavadas nos quintais.

Me perguntam sobre flores brotando à beira do asfalto? Isso só vive no poema de Drummond.

O planeta revolta-se em tufões, tempestades, estrondosos tremores. Esconde sua pouca água e assiste ao rio de larva dos sentimentos humanos, de egoísmo, cinismo, arrogância, inércia, leniência,medo, orgulho, tudo em franca derrocada rumo à barbárie.

O planeta fez sua escolha. O Deus daqui é o capital, com sua pequena corte de seguidores. Os livros de fé foram atirados ao mar morto, há somente a crença no lucro e é para ele que se estende e se afofa o berçário das especulações, num pequeno círculo editado, á margem do qual a humanidade perece.

A casa do futuro está sendo preparada. Ela é inteligente, abriga os ecos do progresso, mas já não precisará de habitantes. Autônoma, ela inventa todos os dias uma vida para si mesma, e para as suas máquinas fascinantes.

E a política, perguntarão vocês? Espero o gigantesco delay para dar-lhes uma resposta plausível. E digo, medindo as palavras: A política veste-se de gala, para assistir ao seu próprio velório.

Não venham. Não gastem seus preciosos anos luz para essa visita. O planeta terra, que vocês veem como um pálido ponto azul, belo e distante, espreme com mão vigorosa e atira ao léu, sua própria vida.

Fast-Food Bizarro

Nosso mundo é louco. Nosso mundo é louco e triste. Nosso mundo é louco, triste e bizarro. Senão contemple as notícias. Faça uma busca no Google e se espante com os mais de um milhão de achados para a chamada “meninas sequestradas”.

            Na Nigéria, o movimento islâmico extremista Boko Haram, assombrou o mundo ao afirmar que sequestrou, numa escola do norte da Nigéria, mais de duzentas meninas com idades entre dezesseis e dezoito anos e que as vai vender como escravas, em cumprimento às ordens de Deus.

            No Brasil, a crueldade instantânea e corrosiva também não tem limites. Ou você não viu na tevê, o linchamento da mulher, acusada nas redes sociais, de ser sequestradora de crianças para rituais de magia?

Fabiane Maria de Jesus, dois sobrenomes fortes, mas não adiantou. Foi espancada até à morte, por conta de um boato e de um retrato falado publicado no facebook.

Nosso mundo é irreal, ou eu deveria dizer hiper-real? Pois olhe as pessoas, no trânsito, no shopping, na praia, nos bares, todos vivendo vidas paralelas, postando fotos de cada um dos seus instantes, varrendo suas pequenas telas, transmitindo, lendo rapidamente milhares de postagens, ficando em estados de alerta, prontos para o vale tudo?

            A violência virou fast-food, que você pode deglutir na tevê, no rádio do carro, nas redes sociais, ou pode até registrar, em tempo real, mesmo da janela do seu edifício, para depois postar as imagens sangrentas, que são então compartilhadas, curtidas, comentadas.

            Nosso mundo sangra por todos os poros, nossa cultura tem a pele esgarçada, triturada por esses milhões de passos trágicos de uma dança bárbara, inventada aqui e agora, na qual a morte virou a única moeda.

            A morte, esta incansável senhora de mil faces, já nem tem tempo de recolher os seus cadáveres. Rápida como um raio, que há que levantar leitos e carruagens para as almas que partem, a morte espanta-se de ver tantas mulheres e meninas sendo descartadas.

            Enquanto se apressa, porque sabe que terá de acudir as almas das primeiras meninas vendidas na Nigéria, a morte ainda encontra um átimo de segundo para um naco de filosofia: ”Vida, que palavra é essa completamente esvaída dos seus sentidos? Eis que este é o meu reino, eis que a golpes de privada, de cutelo, estampidos e facadas, expurga-se a juventude, esfola-se e mata o templo mesmo onde a vida poderia ser germinada”.

            Á pressa, a morte mira de relance a decoração de um grande magazine com suas mega-promoções para o dia das mães. Dá de ombros e deleita-se com o som da tropelia dos seus mil pés, a saltitar por entre os rejeitos de vida descartada.

            Avança, acode aos múltiplos chamados, esbarra e dá safanões pra cá e pra lá, mas ninguém se dá conta, olhos fitos em seus dispositivos, fascinados por essa vida paralela a escorrer pelas linhas de transmissão.

            “Um mundo morto, suspira a morte de felicidade, enquanto embarca para o norte da África.

Minha Despedida de Saramago

Que silêncio é este que habita à  casa de Pilar? E do lado de fora, que falas são estas do mar d’Espanha,ressaibradas por essa vaga de tristeza?

Somente os milhares de livros, nas suas estantes, ruminam a inércia e o peso das palavras, inventariam fórmulas, arqueiam-se sob o volume de todos os nomes dos muitos romances inacabados, pelas intermitências da vida.

No frio da madrugada, nenhuma nesga de tempo para vigiar o seu memorial do convento, grande obra lavrada pela pá, cimentada pela palavra. Não será na jangada de pedra que ele se libertará da sua quilha de respirar, tampouco haverá tempo e vontade para uma última inspeção à caverna, nenhum vislumbre de desespero por não ter podido assentar um ponto final no seu ensaio sobre a cegueira do mundo.

Tão longe já, uma houtra madrugada brumosa, quando o almoáden cego ergueu-se até a montanha, acordou os seus para a oração, riscando na pedra as primeiras sílabas da história do cerco de Lisboa, e, sem o saber, anunciando de antemão,antigas e futuras  histórias de tantos outros cercos, tantas prisões, inquisições, tantos caminhos alinhavados, como se adivinhasse já, as múltiplas pontas do novelo azul de Maria de Guavaíra.

Não será de blimunda, a última lembrança que lhe acudirá,nessa breve agonia que já lhe toma de assalto o fôlego, os sonhos, o vago desejo de acordar e conferir no antigo relógio, a hora exata do princípio do seu amor.  Entre um e outro combate de células fatigadas, incofmormadas, lembra-se de uma das suas mais belas narrativas de morte,e sabe que morrer é isso, o esforço supremo da vida por querer reter aquele que aqui já não quer estar.

Não vai conferir tampouco a escrita do seu Evangelho, espalhada aqui e além, por todas as suasnarrativas, onde falaram com a mesma veemência, as formigas, os camponeses, os poetas, as mulheres à dias, os elefantes, as invernias a engrossarem a fala do Tejo.

Levantado do chão, permite-se uma vaga saudade do seu cobertor, da voz ciciada de Pilar, do ritual de final de tarde, onde se deixava ficar pacientemente a alimentar e conversar com seus animais.

E quando Joana Carda riscar o chão com a sua vara de tordilho, quando os cães de Cerbère começarem a latir, o mar d”Espanha, encapelado, bramirá sua saudade daqueles olhos inquiridores, daquelas mãos incansáveis na sua faina de cinzelar a força e a riqueza das suas idéias.