Que silêncio é este que habita à casa de Pilar? E do lado de fora, que falas são estas do mar d’Espanha,ressaibradas por essa vaga de tristeza?
Somente os milhares de livros, nas suas estantes, ruminam a inércia e o peso das palavras, inventariam fórmulas, arqueiam-se sob o volume de todos os nomes dos muitos romances inacabados, pelas intermitências da vida.
No frio da madrugada, nenhuma nesga de tempo para vigiar o seu memorial do convento, grande obra lavrada pela pá, cimentada pela palavra. Não será na jangada de pedra que ele se libertará da sua quilha de respirar, tampouco haverá tempo e vontade para uma última inspeção à caverna, nenhum vislumbre de desespero por não ter podido assentar um ponto final no seu ensaio sobre a cegueira do mundo.
Tão longe já, uma houtra madrugada brumosa, quando o almoáden cego ergueu-se até a montanha, acordou os seus para a oração, riscando na pedra as primeiras sílabas da história do cerco de Lisboa, e, sem o saber, anunciando de antemão,antigas e futuras histórias de tantos outros cercos, tantas prisões, inquisições, tantos caminhos alinhavados, como se adivinhasse já, as múltiplas pontas do novelo azul de Maria de Guavaíra.
Não será de blimunda, a última lembrança que lhe acudirá,nessa breve agonia que já lhe toma de assalto o fôlego, os sonhos, o vago desejo de acordar e conferir no antigo relógio, a hora exata do princípio do seu amor. Entre um e outro combate de células fatigadas, incofmormadas, lembra-se de uma das suas mais belas narrativas de morte,e sabe que morrer é isso, o esforço supremo da vida por querer reter aquele que aqui já não quer estar.
Não vai conferir tampouco a escrita do seu Evangelho, espalhada aqui e além, por todas as suasnarrativas, onde falaram com a mesma veemência, as formigas, os camponeses, os poetas, as mulheres à dias, os elefantes, as invernias a engrossarem a fala do Tejo.
Levantado do chão, permite-se uma vaga saudade do seu cobertor, da voz ciciada de Pilar, do ritual de final de tarde, onde se deixava ficar pacientemente a alimentar e conversar com seus animais.
E quando Joana Carda riscar o chão com a sua vara de tordilho, quando os cães de Cerbère começarem a latir, o mar d”Espanha, encapelado, bramirá sua saudade daqueles olhos inquiridores, daquelas mãos incansáveis na sua faina de cinzelar a força e a riqueza das suas idéias.