O Velório da Democracia

Compreender em profundidade a complexidade da dinâmica política que estamos vivendo não é tarefa para uma coluna curta. Aqui, quando muito, só poderemos emitir nossa opinião sobre o que eu poderia chamar de “abril amargo”, coroado, no último domingo, com a cerimônia do impeachment, um misto de festa, lamentações, risos, disparates e vaias, uma espécie de velório, onde se perguntava: Quem morreu mesmo? De quem é o cadáver?

Algumas questões precisam ser apontadas em frases curtas: Chegamos ao ápice da crise política e os próximos meses conhecerão a sua fase mais aguda. Por seu turno, os artífices do golpe, começam a tarefa de limpar a casa, organizar o processo do país novo, enfatizar a narrativa que agora se apresentará, do fim da corrupção, da ética e da seriedade na política.

Identifico pelo menos três grupos de personagens dessa reconstrução: O poder político, que providenciará para todos os discursos, a #hashtag da pacificação. O poder judiciário, em cuja base da Lava Jato, se empenhará no sentido de alimentar a tese da criminalização do partido da presidente Dilma. Finalmente, o poder midiático, que prosseguirá, agora em bases mais sólidas, com o seu projeto de edição e de enquadramento de uma nova pauta para o país.

O processo começou na segunda-feira mesmo, quando a comentarista de economia Míriam Leitão afirmou com ênfase, que era preciso acabar com as pautas bomba e exaltou as qualidades do novo líder global, Michel Temer. E, em voz baixa, acrescentou que a Lava Jato precisa continuar.

A mídia comercial privada necessita agora calafetar suas fendas. Produziu um divórcio profundo entre os que refletem e os que consomem sem pensar. Recebeu o carimbo que já lhe havia sido concedido nos anos de chumbo, e agora precisa reorganizar-se para refazer uma imagem de imparcialidade e isenção. Agora já não precisa inflacionar e manipular números, e, vai pedir uma certa pluralidade, ainda que mínima, das opiniões dos seus âncoras. Poderá até apoiar o “fora Cunha”, pois este personagem já cumpriu a sua função na agenda do impeachment.

Nessas linhas finais da coluna, frases de lamento pelo parlamento brasileiro, que não é senão, o produto de uma distribuição da política em bases tradicionais: Nossos representantes, em sua larga maioria, representam o discurso religioso tradicional, e o empresariado, A maior parte deles detendo concessões de rádio e televisão, daí constituírem-se em verdadeiros fenômenos de votação, perpetuando mandatos entre filhos e netos.

Essas mais de quatro horas de votação, atestaram de forma cristalina, a impossibilidade de sustentação de um governo democrático com um parlamento desse nível. Acresça-se a essa situação, a presença de um judiciário partidarizado e de uma mídia empenhada em fazer oposição cerrada aos governos de esquerda, num trabalho cruzado que irradia-se por toda a América latina.

O país está irremediavelmente dividido e não será o pão e o circo que nos reunirá e fortalecerá  a democracia, ferida de morte por esse circo de horrores.

Gafe ou Conspiração?

Não consegui  assistir até ao final, o áudio do vice presidente Michel Temer, supostamente vazado de modo incidental, uma gafe, conforme a mídia comercial privada, uma conspiração, segundo os integrantes do governo.

A voz era segura de si, tranquila, a desembrulhar o enredo preparado, numa espécie de discurso de posse, dirigido ao “capital” e aos “que trabalham, pedindo a pacificação do país.

Estava lá, um homem vaidoso e cheio de si, fascinado pela ideia de subir à rampa, sentar-se na cadeira presidencial.

Naquela apresentação bizarra, não estava presente o estadista, o jurista, o vice presidente da república. Naquele áudio, destilava-se, sob a frágil capa de verniz do homem probo, o veneno do conspirador, do traidor da república, que, investido do cargo, a partir do voto popular, abdicou integralmente do seu estatuto, saiu pela porta dos fundos, mas, sem abrir mão de todas as prerrogativas do cargo, para dar vazão à sua verdadeira face, sob o disfarce de se preservar, de se defender da artilharia do governo.

Fico me perguntando se fosse Dilma a ter vazado um áudio daquela natureza. Descontrolada, histérica, despreparada para governar, diria a mídia brasileira oligopolista. Recordemo-nos dos grampos do juiz Sérgio Moro, e do modo como os mesmos foram encaminhados à mídia, por entrega direta, e a maneira como foram utilizados para ampliar a fogueira do impeachment.

Os defensores do golpe têm afirmado que há que se ter coragem e ousadia, a fim de que se possa avançar num projeto de mudanças para o país. Retórica vã.  Mestres na arte de achacar, os parlamentares, em grande maioria, transformaram a Câmara dos Deputados em um palanque, onde promovem o desfile macabro do seu amesquinhamento, falta de ousadia e coragem para de fato promoverem as mudanças indispensáveis ao crescimento do país, na preparação de um longo primeiro turno que quer alçar ao poder, a chapa Temer Eduardo Cunha.

O muro erguido nas imediações do Congresso Nacional, para além de traduzir-se numa medida de segurança, é um símbolo concreto da divisão na qual o país se acha mergulhado, por artes da política, que tem na narrativa das mídias comerciais privadas, o alimento para o ódio e a criminalização da presidente Dilma Rousseff, do seu governo e do seu partido.

A situação do país é das mais graves, sobretudo porque o povo brasileiro está órfão. Órfão de seriedade na política, de retidão de caráter, da parte da maioria daqueles que deveriam cuidar da defesa da democracia e da Constituição.

O capítulo mais terrível desse momento histórico, e que poderíamos chamar de a arte da política cínica, é escrito pelo PMDB, o maior partido da república, deteriorado, agindo sobretudo nas sombras, e, ancorado na sua “ponte para o futuro”,  com a qual espera rearranjar a política brasileira em sintonia com o capital e com as ideias neoliberais.

A mídia comercial trabalha com a explicação do vazamento, mostrando aos telespectadores, um político preparado, hábil e cauteloso. A mensagem que nos chega, clara e cristalina, é a de um vice presidente covarde, pouco preparado para assumir um país fraturado, entrincheirado e incapaz de comunicar-se, em todas as suas vertentes.