Omelete de Nada

As vezes acontece. O teu editor já te deu o prazo máximo, você tem consciência do pequeno retângulo de espaço aberto, 36 linhas a serem preenchidas, mas só há uma ausência profunda dentro de você.

Os temas desapareceram, tiraram férias, desligaram os telefones imaginários, desconectaram-se, não há como fazer contato com um tema que seja.

Você inventa frases de efeito, rebusca na memória um pensamento clássico, nada de jeito acontece. É como perder o sono, ou pior, é como tentar acordar, no meio de um pesadelo, todos os monstros com armas apontadas para você, mas, o que se pode fazer, senão espremer uma gota que seja de sanidade, uma trilha por onde começar, uma ponta qualquer de novelo azul que te possa levar a algum labirinto?

As vezes, escrever é como atirar pedras a um lago, e ficar à espreita, vendo as ondulações, o barulho suave da fricção da pedra com a água fria, o silêncio, um fundo que não chega nunca. Escrever, as vezes, é como ser uma espécie de torneira quebrada, a gotejar, o dia inteiro, pingo a pingo, compondo uma sinfonia monótona das horas mais frias. Escrever, as vezes, é não dizer nada, ainda que se vá juntando palavras, como num jogo de lego, uma construção improvável, de um edifício todo feito de sílabas ocas de sentido.

Dezesseis linhas, seu telefone tocando, é o editor. Você sai dos escombros de si mesma, e com voz aparentemente firme promete: Já já mando a coluna.

E regressa ao brinquedo de lego, tentando a golpes de martelo, desmantelar a inércia e fazer com seus restos um fingimento de escrita, uma invenção de crônica, uma frase qualquer que se salve no meio dessa algaravia.

Seu tempo acabou. Em desespero, você pede ao word que conte as palavras, quase esmurra o teclado sem fio, Não pode ser. Mil setecentos e trinta caracteres, uma ninharia para quem já atirou pedras ao lago, espreitou um poço sem fundo, vasculhou as horas, à cata de um enredo, uma saída, um arranjo aceitável, um protocolo de salvação.

Parabéns. Seu tempo acabou. Você está no topo do desfiladeiro. Invente uma frase comprida, como uma corda grande, segure-se nela até o fim. As frases compridas acabaram, ou são como as velhas frutas de final de feira. Seu tempo acabou, o trem está chegando, e você terá de desocupar os trilhos, sob pena de virar omelete de nada. Omelete de nada. Três palavras insípidas para uma crônica que ninguémquererá ler.

Desocupe os trilhos, prepare o próximo envio do correio eletrônico, sem esquecer de vasculhar, por entre as peças de lego que você empilhou, o título dessa sua escrita feita de cascas e ossos das horas de inércia.

 

(Este post foi publicado hje em minha coluna do Jornal A União).

Balanço Geral: Cartografia de um País Desmontado

Balanço Geral: Cartografia de um País Desmontado

 

Chega o fim de ano e a gente se pega tentando fazer balanços, olhar para trás, prever o que será amanhã, como estaremos semanas após havermos espocado a champanhe do ano novo. Champanhe? Eu não beberei nenhuma taça. Literalmente, sou uma pessoa que dói, todos os dias, desde que começou esse desmantelamento das estruturas políticas, econômicas, culturais e sociais do país.

Sou uma pessoa que dói, e por isso talvez minha síntese da história brasileira dos últimos três anos seja assim meio apressada, com lacunas imensas e provavelmente algumas palavras fora do lugar, outras desafinadas, como numa espécie de ópera em que não há sincronia, nem regência.

A verdade é que estamos habitando um país completamente desmontado, e a fase do agora, é talvez uma das mais impróprias às festividades. Vivemos a fase do império da máquina, do tratoramento, ocupado em aplainar a terra, desmantelar restos, implodir onde for preciso, para que se reinstaure a lógica do mínimo, na política, na cultura, na economia estatal, nas relações de trabalho.

Mas esse processo de desmantelamento não começou agora, nem se pode dizer que houve dias de calmaria. Desde 2014, apressou-se o tom da trilha sonora desse imenso trhiller, acelerou-se as cenas principais, tudo a jato, para que se possa recomeçar, num tempo estranhamente parecido com aquele do passado, em que a miséria, as desigualdades, a riqueza e a pobreza, eram coisas naturais, dadas por Deus.

Tampouco pode se dizer que a imensa tempestade não fez suas vítimas. É clara a morte da política. E aqueles políticos que ainda seguram, por caridade do capital, as chaves dos palácios e das malas, emprestam suas últimas energias deletérias para a limpeza, o aplainamento, o desmantelamento da antiga política, da política necessária, daquela que tentava uma síntese desenvolvimentista na qual capital e trabalho pudessem dialogar, naquela em que crescimento econômico, social e político não fossem apenas lendas retóricas, sem qualquer enxerto de realidade.

A morte das lendas. Sim, lendas caíram por terra com a força de um tsunami nesses dois últimos anos. Os mesmos braços políticos que se emprestaram com vigor e sanha falastrona ao esforço de derrocada do Brasil, eles mesmos viram ruir sua ética, e sua moral falaciosas, sob os carvões em brasa das delações e das suas provas explícitas.

A mídia limpa, vigilante da decência e da ordem, respirou também o hálito da sua própria carniça propineira.

A terceira morte que salta aos olhos, a terceira morte mais desastrosa é a da perda de autonomia e de poder de compra dos mais pobres, e com ela, o retorno da caridade de ocasião, das campanhas contra a fome, dos pedidos do Pão de Açúcar, para que ajudemos a quem não pode mais comprar. O acelerado desastre brasileiro implodirá o ano novo e fincará de vez, as últimas estacas de desesperança num país desmantelado.

 

(Este post foi publicado hoje em minha coluna impressa do Jornla A União)