Carta para Ronaldo Monte

 

Querido Rona.

 

Tenho um coração em desconcerto, e entre mãos, o teu “Manual Prático do desaparecimento”.

Procuro no livro uma mensagem cifrada, uma chave que seja, que possa abrir o mundo do entendimento, do consolo, da plena aceitação.

Seu plano de fuga deu certo. Sem aviso, sem estardalhaço, foi-se o seu riso frouxo, sua tagarelice alegre, sua voz morna a vaguear entre as sílabas de alguma crônica, alguma poesia. Minhas lembranças, da gente juntos, como que se atropelam na minha memória desalinhada. Lembra daquela oficina de Haikai, com Alice Ruiz, Valéria, Beto, Everaldo…. Naquele dia passamos horas a fio sentados no jardim, tentando escrever haicais que faziam que estourássemos de riso, de tão ruins que eram.

Naquele dia, você tentou me ensinar a criar alguma figura na areia. Já nem me lembro que figura era, só me recordo da sua paciência, da sua galhofa, do seu frouxo de riso.

E no Clube do Conto? Que tempo bom era aquele nosso, de espicaçar aqueles de quem mais gostávamos? E veio o “Lunário perpétuo”, onde escutei os sininhos de vento a brigarem com sua risada. E os lançamentos, onde você me conduzia pelo braço, e eu me sentia encantada e envaidecida, feliz de poder fazer duo com suas traquinagens.

E a festa da sua embaixada em Usupp? Tá bem, pode ser que eu tenha escrito errado, mas naquele lugar, por onde se chegava a partir de uma geografia impossível, Cabedelo/ Usuppy, naquele lugar você plantou a liberdade no centro de uma constituição escrita em apenas uma página de crônica. Naquele lugar você era o embaixador, e eu pedia uma vaga de ministra, enquanto bebericávamos cerveja e sucos, e sorríamos a mais não poder.

E nem faz tanto tempo, todos acorremos à bodega, para o lançamento do seu Manual Prático de Desaparecimento, que afinal estava mesmo desaparecido. Os poemas em um caderno, você chamando as pessoas para ler ao microfone, prometendo um segundo lançamento ao qual não pude ir.

Somente hoje, quando abriu-se essa imensa clareira de silêncio, somente hoje compreendi que você sempre habitou no centro da palavra. Com a palavra, você cerziu, rasgou, cinzelou, esculpiu memórias do fogo, desvelou paixão insone, inventou falas para encantar crianças pequenas, desenhou comtraço ao mesmo tempo delicado e firme, , poemas para canções admiráveis.

E eis que vasculho entre as páginas do seu manual prático de desaparecimento, e só encontro o tempo a liquefazer-se em espera, em promessas de reencontro, sílabas grafadas pela sua mão, como uma múltima oferenda, um canto timbrado pelos tons da beleza, um canto a forjar como que asas, como que pétalas, como que sonhos de esperança.

Eu queria dizer tanta coisa Rona. Mas só fico aqui dando voltas em torno desse meu espanto, por esse silêncio absoluto, essa interrupção, esse gesto inacabado. Fico aqui revirando essa minha tristeza, enquanto palavras pálidas, na página do jornal, repetem o eco dessa minha carta de despedida.

 

(Este post foi publicado ontem, sexta-feira, em minha coluna impressa do Jornal A União)