Até a Morte tem Medo

 

Eu queria perguntar por Marielle, queria pensar sobre suas últimas palavras, no Buraco do Lume, perguntar por sua sensação de dever cumprido, sua urgência em saber que o tanto por fazer estava mesmo ali, na sua cidade, no seu mandato.

Eu queria perguntar quais teriam sido suas últimas palavras, Prosaicas? Alegres? Preocupadas? Eu queria perguntar, no corpo todo dessa crônica, quem mandou matar Marielle? Quem pagou pela submetralhadora, pela locação do carro, pela ousadia e frieza   do matador, o braço todo tatuado, todo empenhado em atirar, atirar, enquanto a gosma do seu ódio empestava sua própria bílis?

Eu queria perguntar por esse ano todo sem Marielle, mas agora não posso. Há cadáveres esperando no pátio da escola, na geladeira do IML, nos caixões, velados por suas famílias.

Eu queria cantar essa dor coletiva por Marielle, mas agora uma dor nova se apossa de mim, com força de saibro de machado, com virulência de arma de fogo, destroçando artérias, músculos, restos de merenda, planos, juventude, muita juventude.

Queria me juntar ao festival das mulheres, incisivo, jogral dolorido, mas não posso, porque até a morte atalha essa minha vontade, até a morte recolhe seus despojos, com um nó na boca do estômago, a morte, estupefata, fazendo a colheita com uma espécie de tremor nas mãos, a morte, esta senhora incansável, até ela está triste.

Eu queria falar da luta incansável de Marielle, pelas comunidades pobres, pelo empoderamento das mulheres negras, pela defesa intransigente da democracia, mas agora deixo que o pranto indignado distorça frases, desarrume parágrafos, enquanto as vozes cínicas dos gestores do estado contam os mortos e inventam lágrimas para a televisão.

Mataremos uns trinta mil, prometeram os que agora estão no poder. Agora assistem ao derrame de cadáveres, nas tempestades de verão, na sanha virulenta dos atiradores, nos confrontos com a polícia, nas casas de família, onde as cifras de feminicídio engordam assustadoramente.

Queria me juntar às mulheres, e dizer a Marielle que aquela noite terrível não foi em vão. Queria lhe contar que nesse ano todo, nos investimos de coragem, lutamos, e o país dos seus sonhos começou a ser reerguido.

Não posso dizer nada disso. Não posso lhe contar de um país ferido de morte, fedendo a pólvora, os dutos do ódio alimentados sem trégua por todos os dias, os corpos soterrados na lama das mãos impunes da ganância capitalista, os corpos no meio da rua, cadáveres no pátio da escola.

Não posso contar a |Marielle que até a morte, esta senhora circunspecta, empenhada em sua colheita macabra, até a morte se acha assustada.

Até a morte pede trégua, com mãos trêmulas e um quase pranto nos olhos de serpente.

Mulheres que Lutam com seus Corpos

Será uma manifestação de força. Uma manifestação de coragem. Uma manifestação afirmativa. Uma manifestação impressa nas almas, nos corpos, nas vozes, nos gestos delas, as mulheres da Paraíba.

Haverá canto, dança e poesia. E já defronte do Teatro Santa Roza, a partir das 14 horas, haverá a presença da alegria, da ternura, do segurar das mãos, tudo regado a um misto de apreensão, de tristeza, tudo regado à uma aura de “sororidade”, sentimento que vem presidindo a luta das mulheres brasileiras e paraibanas.

Um misto de tristeza sim. De indignação. As ruas do centro estarão cheias de mulheres, mas cada uma lembrará o vazio de uma mulher morta, em casa, no trabalho, na rua. Cada uma terá em si mesma, o vazio de uma mulher anulada, encerrada no medo, guardada entre quatro paredes, sob o olhar vigilante da opressão.

Ecoarão seu grito de guerra, repartindo as sílabas por entre o barulho da cidade: “Mulheres vivas, livres e por direitos”!

Mulheres vivas, cada palavra batendo com vigor nos muros da cidade, vozes suaves, vozes fortes, vozes de adolescentes e de senhoras, ecoando esse coro pungente, urgente, premente.

Caminharão. Passos decididos, levando seu grito de guerra até à Praça dos três Poderes, seguirão   para a Lagoa do Parque Solon de Lucena, os rostos e corpos pintados, faixas e cartazes nas mãos, a urgência de dizer, com o corpo inteiro, da necessidade de que se atalhe a violência, a injustiça, a opressão, o assédio, a brutal intolerância, de companheiros, de familiares, de desconhecidos a golpeá-las com o aço da sua crueldade.

Muitas mulheres, livres e por direitos, mulheres em carne viva, refazendo o caminho, reorganizando a trilha, o ciclo, olhos marejados, olhos brilhando de tenacidade e determinação.

|           Mulheres vivas, arrancando da força da sua luta, a presença de tantas outras guerreiras, arrancadas brutalmente do centro da batalha. Margarida Maria alves, Violeta Formiga, Maria da Penha, esta outra Maria da Penha, martirizada, mas ainda lutando.

Mulheres em carne viva, sem um momento sequer para descansar a cabeça. E convocam quem já não está aqui, mas parece tão viva, entre as árvores, os carros, as botas dos militares, os ternos engomados dos parlamentares. Marielle, presente! Marielle, presente! Marielle, presente!

Os dias caindo na bacia do tempo, mais de trezentos dias, quem matou Marielle? O silêncio sombrio dos cadeados, das metralhadoras escondidas, o cinismo no riso da autoridade, o processo engordando suas folhas de inutilidade.

Voltam para casa, lavam o suor do rosto, mulheres vivas, livres e por direitos, e retomarão de novo as ruas, vão escavar com seus gritos, a indiferença e a covardia dos criminosos. Quem matou Marielle? Ficarão roucas, mas não descansarão. Quem matou Marielle? Quem surrupia, todos os dias, com um ódio nojento, a vida das mulheres?