Meu Corpo de Escritora

Meu corpo de escritora habita o quarto de despojos da minha memória. E, com a paciência de uma velha senhora acumuladora, guarda tudo o que encontra. Cenas prosaicas de rua, extratos de cheiros, os maus e os bons. Antigas lembranças, sensações, sonhos, uma variedade tão grande de coisas, que não se pode nominar.

Meu corpo de escritora, velha senhora de braços longos e memória arguta, arranca das minhas mãos o jorro das palavras, e sem ordem, nem disciplina, vai lhes dando lugar na escrita derramada sobre a folha em branco.

Meu corpo de escritora, esta ladina senhora de mãos que não suam, rouba o que pode nas minhas viagens. Uma conversa íntima na mesa ao lado, um tilintar de pulseira num braço alheio, o jeito de contar as cédulas do atendente da recepção, enquanto chupa o vazio por entre os dentes.

Ladina senhora, a espreitar e demarcar, nas margens dos livros dos outros, uma escrita nova, uma metáfora que depois ela possa sujar e transformar, com alguma tinta antiga do seu alforje.

Trabalha como se fora louca, esta ladina senhora, sem qualquer disciplina, sem tempo nem hora. E ausenta-se, por dias a fio, em vadiagem incerta por não-lugares, a dormitar o germe de alguma frase, boa ou malsã.

As vezes logro escutar a faina do meu corpo de escritora. E escuto mais. Batidas loucas na porta do quarto de despejo. É meu corpo de leitora pedindo sua obra. Inútil. Meu corpo de escritora, enquanto trabalha, desconhece a fome desta pequena senhora etérea, esperando lá fora, tentando entrar, inutilmente.

E como trabalha, a velha cigana! Retoca personagens, empurra outros malarrumados para o centro dos seus mundos, encanta-se com algum ente que precisa de mais atenção, de mais narrativa, e queda-se, a velha senhora, a mimar este ente como se fora um primeiro filho.

Apaga, monta e remonta, atira para longe restos de enredos, como se fossem refeição de ontem requentada.

Inconformada, cospe nas frases novas, e escava de mim o que pode. Descobre meus sótãos, onde guardei o limo das minhas dores. E de lá volta com feridas remontadas sobre os ombros, e nas mãos, carrega quase-pensamentos que não se firmaram, pequenos enredos interrompidos, que vai ver o que pode ser feito com esses arremedos de escrita.

Sem dó nem piedade, sem qualquer confrangimento de consciência, saqueia o que pode, e arrasta para o seu armazém, velhos hábitos, gestos tolos, frases de livros antigos, um grito distante, que escuto num carro em movimento, que pode amoldar à sua vontade, na sua escrita delirante.

E de repente, sem qualquer aviso, atira para longe o que foi escrito. Deita-se sobre os despojos da sua lida, olhos cerrados, corpo inerte, indiferente ao ruído da porta, sacudida pelas mãos frenéticas do meu corpo de leitora.

 

(Este post foi publicado ontem em minha coluna impressa do Jornal #AUniao).