Onde o Jornalismo não Vai, O Cinema Denuncia

Assisti quarta-feira à noite, na tevê Brasil, ao documentário completo do cineasta Sílvio tendler, “Militares que disseram Não”, entregue ao público em 2014. Trata-se de uma grande reportagem audiovisual, sobre a situação dos militares que resistiram ao golpe de 64, em apoio ao governo do presidente João Goulart.

Mais que isso, é um capítulo tenebroso do período, um relato duro para ser guardado na memória da nossa história recente, onde apresentam-se, com todas as tintas, os requintes de crueldade, arbitrariedades variadas, assassinatos e prisões,  sem falar das torturas morais e físicas impingidas a esses militares.

No documentário, os sobreviventes falam do orgulho de haverem defendido a nação, o governo do presidente Jango, mas denunciam as marcas dos terríveis dias que viveram presos ou fugitivos da sanha golpista.

Em um depoimento, um militar conta de que maneira quebraram a sua força espiritual, minaram a sua vontade de viver. O torturador descreveu, com riqueza de gestos e detalhes verbais, como faria para arrancar com as mãos, do útero da sua mulher, o filho que os dois estavam esperando.

Não direi que estejamos vivendo uma espécie de repetição desse ciclo tenebroso. Mas é certo que os desenvolvimentos recentes da política brasileira nos arremessam para um perigoso estado de exceção, chancelado por parte do poder judiciário, pelo grupo político que planejou e executou o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, pela imprensa comercial privada, monopolista e sintonizada com esse processo, responsável por consolidar junto à opinião pública, a narrativa de desqualificação dos 13 anos de governança do Partido dos Trabalhadores e de transformar em espetáculo midiático, a vigorosa criminalização que se abate diuturnamente sobre os líderes do partido.

O trabalho da imprensa é sistemático. Trazer à linha de frente das suas pautas, a narrativa  de cada episódio do processo, como numa espécie de novela, que pode ser consumida vinte e quatro horas por dia, nos canais de tevê fechada, com flashes nas tevês abertas e ampla cobertura nos jornais de circulação nacional.

O episódio de hoje trata da prisão do ex-ministro Guido Mantega, numa situação dramática. Foi retirado do bloco cirúrgico de um hospital paulista, onde acompanhava sua mulher, que se submeteria a uma cirurgia de tratamento de um câncer.

Ausentes da pauta midiática, estão a aprovação do Projeto de Lei 257, aprovado ontem na câmara dos deputados, e que promoverá um profundo arrocho salarial para os servidores públicos, que em todo o Brasil, fazem hoje uma paralisação de protesto associada à paralizações em diversos setores, convocadas pelas centrais sindicais.

Fecha-se o cerco em torno do ex-presidente lula, com ampla cobertura midiática, enquanto que as notícias sobre Eduardo Cunha dão conta da sua andança pelo país, da feitura do livro que promete divulgar até o natal, sobre os bastidores do impeachment.

O jornalismo brasileiro não pode mesmo ir até onde estiveram as câmeras de Sílvio tendler. O jornalismo, em nosso país, está ocupado em publicizar a narrativa dominante do tempo presente. Se antes era preciso narrar a caça aos comunistas, agora é preciso narrar o extermínio do PT, e das esquerdas que o apoiam.

 

Esta coluna será publicada amanhã, em minha coluna impressa do Jornal A União

As Promessas do Presente

 

Primeiramente, enquanto rodavam os créditos finais, eu e mais algumas pessoas desvairadas, alucinadas, gritamos. Foi um grito rouco, no cinema silencioso, duas palavras apenas. Duas palavras que bem poderiam ser traduzidas para luta e resistência.

Mas me deixem começar pelo começo. Eu queria ir assistir ao filme Aquarius, incitada pelas críticas, os comentários dos amigos, mas sobretudo atiçada pela curiosidade em conhecer o aplicativo whatscine, incorporado às salas de cinema, e que prometia a estratégia da audiodescrição para pessoas com deficiência visual.

Uma explicaçãozinha breve para que você entenda o que é audiodescrição. Trata-se de uma estratégia de acessibilidade, que garante pistas verbais para cenas visuais, assegurando assim, que pessoas cegas tenham acesso a todos os conteúdos de um filme, uma telenovela, um espetáculo teatral, etc.

Munida do meu celular, onde havia baixado o aplicativo whatscine, rumei ao cinema junto com minha irmã e uma amiga. As instruções eram claras. Buscar meus conteúdos, ir aos downloads, selecionar o filme e sincronizar.

Aquarius é um filme magistral. Coloca no centro da cena, a cultura regional, as particularidades do Recife, suas áreas de moradia, das mais nobres às mais humildes. De dentro de uma história local, porém, vai desembrulhando processos universais que movem o mundo desde muito tempo. A desigualdade, a especulação imobiliária, um modo de organização da família, tecido entre tramas de amor e pequenas crueldades, conscientes ou inconscientes, lugares onde a solidão vem habitar, com suas lembranças doces, ou suas tenazes de fogo.

Aquarius é um filme com um texto denso, entremeado por silêncios que falam. Silêncios onde é a câmera que nos entremostra, uma janela, uma rua apinhada de vida, uma fachada branca, sob o escrutínio do olhar de Clara. Clara, a personagem central, um amálgama de força e ternura, força e ternura, como uma espécie de manto de peça única, , emoldurando o palmilhar da sua guerra em defesa da sua vida, das suas crenças, da sua autonomia.

O desenrolar da história de Clara foi me mostrando a grandiosidade e a ousadia do enredo, a maestria dos autores, com seu sotaque nordestino iluminando as tonalidades do texto. Atada ao narrador do whatscine, chorei e ri nas horas certas, e senti pavor quando segui Clara e seus acompanhantes ao apartamento de cima, infestado de cupins.

A promessa se cumpriu, na certeza retumbante que palpitava dentro de mim. Pessoas cegas, cinema e audiodescrição,e as múltiplas imagens reveladas pelo olhar do outro, ao meu vazio de olhares, à minha fome de ver.

Não tenho palavras para essa alegria, senão essas que lhes dou, inundadas da minha gratidão e de uma nota amarga que ainda precisa ser percutida. Menos de um por cento dos conteúdos audiovisuais brasileiros, contam hoje com audiodescrição.

O meu oscar íntimo vai para Aquarius e para a fachada branca daquele prédio de apartamentos.

Foi Golpe

 

 

A manchete que os jornalistas da grande mídia não ousam formular, aparece e grita dentro da sua narrativa. No dia 31 de agosto de 2016,consumou-se mais um golpe de estado, chancelado pelo parlamento, pela justiça e pelas organizações de imprensa do país, retirando do poder, a quarta presidenta eleita pelo voto popular.

O desfecho surpreendente daquela votação, separando o julgamento dos senadores em dois momentos distintos, revelou exatamente o que a oposição apregoara até à exaustão, no decorrer do processo. A presidenta foi afastada por artimanhas retóricas e processuais, não havia crime de responsabilidade, não havia dolo ou má fé. Por que então torná-la inabilitada para as funções públicas?

Quando brandiu a constituição, quando apelou para a linguagem coloquial, própria da sua região, para apregoar, “Depois da queda, não se pode escoicear”, o presidente do senado, Renan Calheiros encontrava um sinônimo primoroso para não mencionar o golpe: Queda, derrubada.

Alguns minutos após o golpe, Michel Temer, o presidente indireto, falou aos seus ministros, reclamando da divisão na sua base e dizendo que a suspenção da inabilitação poderia ter sido um gesto claro de boa vontade do parlamento. Nem naquela hora o presidente indireto disse a verdade. Ela não poderia mesmo ser dita. A suspenção da inabilitação era um pequeno suspiro de alívio, uma pequena pílula de destensionamento para a consciência de políticos que até o início de março faziam parte do governo da presidenta deposta, e que, nos últimos meses, utilizaram o melhor dos seus esforços para conspirar, negociar, consolidar o golpe que se acelerava dentro do parlamento.

Uma segunda recomendação, daquela curta fala do presidente, antes de embarcar para a China, merece o destaque da nossa coluna. “Divulguem o governo. Dou-lhes toda a liberdade para falar à imprensa, mas divulguem o governo”, disse ele, ainda que com outras palavras. O presidente indireto sempre soube, e sabe-o ainda agora, o governo não poderá prosperar sem o apoio da grande mídia.

A grande mídia aliás, escreveu nesse processo, um dos mais tristes capítulos da sua história recente. Cinquenta e dois anos antes, constituía-se no braço principal do golpe de 1964, construindo e difundindo para a sociedade, a narrativa da revolução, da mudança, do país novo.

Novamente colaborou grandemente agora, construindo e inflacionando manchetes negativas contra a presidenta e seu governo, agendando e convocando para manifestações, mantendo como pauta consonante, onipresente, ubíqua e monotemática, a crítica incisiva em favor da desqualificação da presidenta.

E prosseguirá agora, no esforço de valorizar o “plano Michel”, dispondo dos seus ancoras e dos seus horários mais flexíveis em seus canais fechados e em seu jornalismo de revista. E ainda contará com um puxadinho latino americano, via “El Clarín”, em Argentina, e também na imprensa comercial colombiana.

Não me surpreenderei se nas próximas eleições, a maioria da população fugir dos descaminhos da política, e dar vitória ao voto nulo. Penso na sociedade brasileira como um grande trem desgovernado. As elites, os políticos e a grande mídia divorciam-se flagrantemente de um projeto de cidadania. O país retrocede irremediavelmente e o remédio do impeachment é mais um veneno importante nessa derrocada.