O Trabalho da Dissimulação

O jornalismo informativo, estabelecido no mundo pós-industrial há mais de dois séculos, destinado a destilar notícias ligeiras para uma cultura de massas, ao tempo em que cumpre essa função primordial com maestria, vai estabelecendo com engenho, o que poderíamos chamar de a arte da dissimulação.

Funciona assim: Os acontecimentos do mundo trafegam em grande velocidade nos trilhos da sociedade, e a mídia, de prontidão, leva às casas do público, os fatos como eles são. Temos aqui o primeiro artifício. Os fatos da mídia não são os acontecimentos do mundo. São representações da realidade, editadas, empacotadas em técnica e conteúdo ligeiro, em geral revestidos de interesses, de grupos empresariais, grupos políticos, crenças religiosas, modelo de cultura, que no ocidente, é a cultura branca, civilizada, cristã e capitalista.

Esse curto preâmbulo serve para que eu possa comentar o que ocorreu na última quarta-feira, na Câmara dos Deputados, quando um grupo de manifestantes desfraldou a bandeira da insanidade e da estupidez, clamando em altos brados pela volta da ditadura militar e pedindo o fechamento do Brasil.

Tendo se estabelecido como o vigia principal da sociedade, a mídia deu curso à sua arte da dissimulação, cobrindo aquele acontecimento como algo surpreendente, um fato novo, original e inusitado, mas sobretudo, como algo que em nenhuma medida lhe dissesse respeito, cumprindo-se assim, a segunda etapa do simulacro, qual seja, a de fazer crer à sociedade, que os fatos se sucedem uns aos outros, sem qualquer ligação, sem qualquer fio condutor que os articule e os explique dentro da própria série histórica.

A mídia, ao bradar que está fazendo seu trabalho, exime-se de qualquer responsabilidade sobre aqueles acontecimentos terríveis. Na sua narrativa ligeira, com auxílio de tecnologia de ponta, a mídia diz espelhar os fatos como eles são, mas oculta o fundamental do acontecimento. Aqueles cinquenta manifestantes que ela agora chamou de vândalos e criminosos, em março de 2015, desfilavam em grandes multidões nos domingos da avenida Paulista, contando com a convocação, os microfones, câmeras e ampla cobertura da mídia, a mesma mídia que então os chamou de patriotas, vestidos de verde e amarelo, manifestantes defensores da democracia e de um país de futuro.

O que se viu na quarta-feira na Câmara dos deputados, foi uma pequena amostra do que já ocorrera na Paulista, em grande estilo, e sobretudo com a chancela da mídia, que naquela ocasião, impunha à sociedade como pauta única, o ódio ao governo do PT, cobrindo diuturnamente, cenas de Lula vestido de presidiário, flashes de uma presidenta Dilma enforcada que virava capas nos jornalismo de revista ecoado depois na maior rede de televisão.

Na Câmara dos Deputados, o que se viu na quarta-feira, foram espécimes daqueles que Umberto Eco chamou de Midiotas, e que no Brasil, são filhos da incitação permanente do ódio às esquerdas, parceiros domesticados de uma comunicação monocrática e oligopolista, arquitetando a construção e a defesa de um modelo de país neoliberal, branco, devotado às leis do capitalismo rentista.

Vencidos e Vencedores, O Jogo de Cena da Política

 

O espetacular desfecho das eleições americanas desbancou os resultados dos melhores institutos de pesquisas, assim como todas as previsões dos analistas políticos. Deixou entretanto uma velha lição: O vencedor do pleito, não foi apenas Donald Trump, mas sobretudo a encenação, a narrativa ficcional armada em torno da disputa política entre os dois candidatos.

O desgaste das figuras políticas, no mundo todo, tem se revelado como fiel da balança nas eleições. Cioso da profunda descrença nos políticos convencionais, Trump trabalhou arduamente com a sua identidade. Empresário bem sucedido, perseguiu a construção da fábula de que seria capaz de transformar a sociedade americana, de revolucionar a economia, de valorizar o crescimento do continente.

Deu certo. Deu super certo. Para o eleitorado branco, pobre e com pouca instrução, Trump armou a cena do candidato marrento, capaz de enfrentar os temas difíceis, como a imigração, a questão do aborto, as relações internacionais. A fábula encaminhou às urnas, levas e levas de eleitores que naturalmente se abstiveram em pleitos anteriores.

Encerrada a votação, Trump iniciou o segundo jogo de cena. Rodou o plano presidente, pacificador, voz suave, palavras calculadas. Comprovou mais uma vez o que é a política. Tenha sempre uma cara e um discurso adequado a qualquer situação.

Quem é Donald Trump? Do que de fato ele é capaz? Creio que em pouco tempo, arestas serão aparadas, Trump estará perfeitamente encarnado aos desígnios do capital mundial, reequilibrará as forças neoliberais, em sintonia com as outras potências mundiais.

A política tem sido cada vez mais um bem articulado jogo de cena) Os personagens, como num imenso jogo de legos, são peças articuláveis à cada situação. O desgaste dos políticos convencionais, pede sempre figuras novas, “descontaminadas” das refregas políticas e das denúncias de corrupção que rondam os políticos. Foi assim nas eleições para a prefeitura de Sp, e em muitas outras Brasil a fora. Foi assim nos Estados Unidos da América, e deu super certo. Não estranhemos se na corrida presidencial brasileira de 2018, um nome avesso à política despontar como o preferido da grande mídia. Um juiz? Um empresário?

O eleitorado, essa massa imprevisível e volúvel, precisará de uma boa narrativa ficcional capaz de convencê-la a ir às urnas. O futuro do planeta, não posso deixar de reconhecer, para além das narrativas ficcionais e dos seus resultados, é mesmo sombrio e imprevisível.

Sonhar com um futuro onde não haja ficção, mas somente eleitores maduros, e políticos capazes de articular uma narrativa verdadeira, políticos ocupados em refletir sobre os nossos dilemas sem infantilismos, agressividades, jogos de cena, não sei se ainda assistiremos a um futuro assim.

E mesmo enquanto encerrava a coluna, assisti pela tv, ao discurso de Hillary Clinton dirigido aos seus apoiadores. Fiquei com um gosto amargo na boca, ao ouvir sua exortação às mulheres para que continuem lutando para chegarem a uma disputa dessa natureza. Sofri ainda mais, ao ouví-la dizer da importância de se respeitar a democracia e o voto popular. Não, aquele não era o discurso de uma derrotada, mas de uma líder, disposta a lutar, sempre.

A Canção do Desespero

 

Na quarta-feira de finados, acordei com uma afirmação peremptória na cabeça: Não, aquele não era o dia dos meus mortos, pessoas do meu afeto que se foram, em dias alternados de anos alternados e que, habitantes agora da minha memória, fazem-me visitas com suas lembranças vívidas, de quando estavam vivos, de quando cumpriam comigo a mesma jornada, respirando o mesmo ar, ocupando a mesma trilha de espaço-tempo.

Liguei a tevê, e de novo me veio à mente a urgência dessa ideia, de que meus mortos não têm nada a ver com esse caminhar da multidão, nos cemitérios, comprando velas e flores, chorando, murmurando preces, arrastando os pés à procura dos túmulos de famosos, gente anônima esquadrinhando a terra à busca da simplicidade das covas dos seus, o desespero estampado nas caras, feito um grito terrível cheio de espanto.

Não sei se de fato os finados precisam de um dia no calendário, quando a morte assumiu de vez o comando das horas, dos minutos, quando todos os dias do ano são dias de afirmação da violência, da crueldade, dos velórios à pressa, quando sequer houve tempo para a perplexidade, a aceitação, e somente o desespero compõe sua sinfonia de uma nota única, agônica e longa.

Desliguei a tevê, contemplei os finados da minha infância. Pessoas que viveram muito, deixaram esse mundo por morte natural, avós e pais cujos filhos, no dia 2 de novembro, acorriam ao cemitério com um ramo de flores frescas, uma oração antiga e lembranças de vidas retas e boas.

Os finados agora são cadáveres jovens, infantis, idosos e adultos, esquartejados, extraídos da vida por balas perdidas, atirados à beira da praia com o último sonho ainda exalando nas peles tenras da infância.

Não se finaram. A maioria deles saiu da vida de supetão, por um estampido, um esquecimento, um incidente banal, um ódio antigo e incontrolável.

Os cadáveres acumulam-se sem identificação, em casas, em cemitérios clandestinos, em laboratórios refrigerados, e a morte, como uma trituradora, vai marcando o ritmo implacável na ampulheta do tempo, um, dois, cem, milhões de mortos.

Senti medo. Imaginei um dia de finados universal, multidões aglomerando-se nos portões dos cemitérios e nas ruas adjacentes, esbracejando, pedindo passagem, um tropel terrível a caminhar, a bramir por piedade, enquanto a morte, irremediavelmente ocupada, ia depositando  sua colheita implacável na bacia do tempo.

Não, esse não é o dia dos meus mortos, nem nunca o será. Em todos os momentos que posso, invento orações para as pessoas do meu afeto que se foram, faço reuniões amenas para lhes contar, numa espécie de ruga do tempo só nossa, as transformações do mundo, o modo como agora nos comunicamos, os planos para o futuro.

Nesses dias, como que cerramos as cortinas para esse espetáculo macabro, para essa longa nota aguda de desespero, que invade sem trégua o viver do nosso tempo.