Sob o Manto da Irracionalidade

Não há dúvidas de que estamos caindo de rojo no regime da irracionalidade.  Uma série ampla de eventos demonstra isso. Tudo começou com o processo de impedimento da presidenta Dilma Rousseff, que, finalizado, abriu as comportas do estado para a implementação do governo de exceção.

Num governo de exceção tudo é possível. Fenômenos que antes eram tidos como condenáveis e combatíveis até à última instância, no governo de exceção, ganham o álibi da necessidade, e, à toda pressa, empreendem-se as tratativas e diretivas para que sejam instituídos como norma, ganhando os carimbos e os selos da legalidade.

A maior excepcionalidade talvez, seja aquela que permite a um governo cujo mandato indireto durará  pouco mais de dois anos, empreender reformas econômicas que impactarão a vida do país por mais de vinte anos. No bojo dessa medida, busca-se a aprovação da reforma previdenciária, a qual modificará completamente a vida de cada trabalhador individual, que terá de atuar por cerca de 49 anos, a fim de merecer o justo descanso da aposentadoria.

E tem mais medidas inquietantes. A reforma do ensino médio, prometendo colocar no limbo ou na obscuridade de inúmeras rubricas, conteúdos como filosofia, sociologia, em favor de conteúdos técnicos e informáticos, numa canetada que por si só, travou as portas do diálogo com os estudantes, os educadores e as comunidades, demonstram mais nuances desse governo de exceção.

O mais grave desse processo acontece na política. O foro privilegiado tem sido utilizado em plena luz do dia, para que se evitem investigações na primeira instância, cadeiras de ministérios são negociadas e posses são permitidas, traindo-se abertamente veredicto anterior, que caçara o direito do ex-presidente Lula ocupar o cargo de ministro da casa civil.

Um governo de exceção, com pouco mais de dois anos de mandato indireto, também pôde indicar um ministro do Supremo, que vinha a ser o seu ministro de Justiça, num flagrante desrespeito à Constituição do país. O novo ministro revisor poderá ocupar a pasta por mais de vinte anos,  e emalado pelos poderes de um governo de exceção, negocia em barcos ou em gabinetes, as maneiras pelas quais deseja ser sabatinado.

Os leitores poderiam se perguntar, de que maneira o projeto excepcional do interinato pode dar certo? De certeza há um modus operandi que vem assegurando o sucesso desse governo de exceção. Há que se fabricar uma sucessão de acontecimentos, a fim de que um fato vá substituindo o precedente, sem que nada possa ser guardado na memória do cidadão desatento, que na maioria dos casos, sequer sabe em quem votou nas últimas eleições. A estratégia fundamental, porém, radica na aliança com a mídia. O governo de exceção, perfeitamente sintonizado com a mídia, impõe a cobertura da irracionalidade como se estivéssemos vivendo num estado pleno de normalidade.

É o que vem sendo feito. No Brasil editado pela mídia, tudo está bem, a fora pequenas rusgas críticas, que toda imprensa que se preza tem de ser independente. No Brasil real, a irracionalidade governa os cidadãos, mas brasileiro só fecha a porta quando o ladrão se foi.

 

(Este post foi publicado hoje, em minha coluna impressa do #JornalAUnião)

Um Engavetamento Colossal

Você faz uma busca no Google por maiores engavetamentos da história recente e dá de cara com um monstruoso,  ocorrido em São Paulo, em 2011, na via Imigrantes, envolvendo centenas de carros, dezenas de feridos e um morto. Notícias do ocorrido dão conta de que uma forte neblina, na hora do acidente, prejudicava a visibilidade dos motoristas. O acidente ocupou mais de quatro quilômetros da via litorânea, isolando a baixada santista.

O segundo ocorreu em dezembro daquele ano, desta feita no Japão, sendo considerado o mais caro do mundo em razão do horário da ocorrência e dos prejuízos estimados.

E se você procurasse por um engavetamento colossal na autoestrada da política brasileira? Não perca seu tempo. Não haveria resultados no Google para essa sua busca, entretanto, é certo que se prepara, de maneira célere, atabalhoada, o maior engavetamento da história recente do país, com prejuízos incalculáveis para a democracia, a justiça social e o desenvolvimento nacional.

Na política, a palavra engavetamento tem um sentido completamente diverso do usual. No trânsito, um engavetamento é um acidente de grandes proporções, com muitos veículos envolvidos. Na política, engavetamento significa ocultação de escândalos, jeitinho brasileiro, trâmites e diligências para frear ou estancar, com investigações, “com tudo”, como disse o senador Jucá em seus áudios, amarrando num mesmo quite o senado, a câmara, o supremo e o impeachment pelo fim da Lava Jato.

Aqui, tal como ocorrera na Imigrantes, há também neblina, nuvens escuras, estranhas e terríveis tragédias, nos presídios, nas ruas de algumas cidades, no próprio congresso.

Há um país que sangra e outro que trama, como se não houvesse nada a temer. Há um país estupefato, perplexo e ao mesmo tempo refém de uma espécie de “pileque homérico”, enquanto que no país da corte, elaboram-se tratativas, cada uma mais ousada que a anterior, limpam-se arestas, desobstruem-se pendências, prepara-se o cenário para o engavetamento colossal.

Supostos pecados cometidos pelo governo anterior, agora são brandidos como dogmas religiosos, como remédio permitido no governo de exceção.

Distribuem-se foros privilegiados antes condenados até à exaustão, o mandatário da casa da Justiça deixa seu cargo, abandona seu plano nacional de segurança, e se prepara para a sabatina que o elevará à corte suprema, como revisor da Lava Jato.

Tudo pela ponte para o futuro, tudo pela salvação nacional. Salvação de quem? De quantos? O engavetamento será colossal. Eduardo Cunha poderá ganhar seu salvo conduto para um tratamento digno; Moreira Franco há de recuperar seu ministério que já quase lhe escapa das unhas, Jucá, um dos ideólogos centrais desse plano de engavetamento colossal logrará quem sabe o seu antigo posto.

Nuvens escuras rondam a Lava Jato, mas, seja na política, seja no trânsito, um engavetamento tem que ser grande, fazer vítimas muitas. Se a Lava Jato for a vítima da vez, esse será de fato o maior engavetamento da história política do país.

Preparado com esmero, esse engavetamento já incinerou 54 milhões de votos, arruinou um dos maiores partidos de esquerda do país, e fará ainda mais, com os servidores públicos, a educação, a saúde, tudo  pela ponte para o futuro.

A Celebração e a Dança sobre a dor do Outro

O dia de hoje foi estranho. Na mídia, os fatos centrais foram a escolha do novo relator da Lava Jato, e a votação do novo presidente da Câmara dos Deputados. Nada de mais, a política e as suas patranhas, tem sido o foco da mídia nos últimos meses, que ora se porta como o narrador central dos acontecimentos, ora toma partido e engrossa golpes históricos do país, como no caso do impeachment da presidente Dilma Rousseff, claramente apoiado pelo oligopólio midiático.

O dia foi realmente estranho. Depois de longos dias em coma induzido, no hospital Sírio Libanês, morreu dona Marisa Letícia, mulher do presidente Lula, ex primeira dama do país.

E aí ocorreu a cobertura mais estranha já feita pela mídia sobre um caso de morte de uma pessoa famosa. Dona Marisa Letícia tinha sido notícia midiática o tempo todo, por conta do caso do tríplex do Guarujá, sendo manchete principal em horários nobres dos telejornais, através dos áudios vazados pela operação Lava Jato, que por uma terrível semana de março do ano passado, rodaram em toda a grande mídia, expondo intimidades da sua família e dela própria.

No dia da sua morte, porém, a mídia fez uma cobertura esquisita, lendo o boletim médico que decretou a morte cerebral da ex primeira dama, de modo apressado, para retomar a faina da cobertura política e das suas patranhas.

A mídia ignorou solenemente, inúmeras manifestações de ódio e de celebração, por ocasião da longa internação de dona Marisa. Buzinaços em frente ao hospital, tuitaços estimulando o ódio contra ela e sua família, novos vazamentos, do próprio Sírio Libanês, da situação médica da paciente, num claro crime contra a ética médica.

Dona Marisa se foi, de maneira discreta, como aliás sempre se portou, ao longo da sua vida.

A mídia oligopolista prosseguiu na sua faina por cobrir um país editado, um país que a própria mídia julga normal.

A mídia torce pelo governo de um presidente citado mais de quarenta vezes na operação Lava Jato. A mídia cobre com esmero, a escolha do novo presidente do Senado, suspeito de corrupção. Aplaude a nova eleição de Rodrigo Maia na Câmara dos Deputados e repele a fúria dos servidores do Rio de Janeiro, em luta pelos seus direitos e salários.

A mídia cobre com frenesi, a escolha do novo relator da Lava Jato, transformando em não-notícia, o terrível acontecimento da perda de Teori Zavascki.

A mídia ignora solenemente a notícia mais grave: O país está doente. Contaminado pelo ódio, pela crueldade, o país festeja a morte, celebra e dança sobre a dor do outro. A mídia edita seu país normal, celebrando e dançando sobre o cadáver da democracia, e, quando lhe é útil, a mídia convoca manifestações e insufla o ódio na sociedade, apresentando bonecos do ex presidente Lula e seus familiares, vestidos de presidiários.

Que dona Marisa descanse em paz, longe dos buzinaços e dos holofotes, e se houver um outro mundo onde dona Marisa possa rezar, que peça por nossa pátria doente.