Intervalo para a }Ternura

Ou seria uma carta para os meus leitores?

Sim, queridos leitores, farei um breve intervalo para a ternura, o silêncio, o recolhimento. O mundo onde vivemos está tão difícil, minhas crônicas andam tão duras, que precisarei parar para me reabastecer, para o repouso do verbo, para o desacelerar da maquinaria das narrativas, para a quietude e os gestos da calmaria.

Quando eu era pequena, em todas as vezes que ia dormir, ficava sonhando com uma casa muito pequena, onde eu vivesse, com economia de gestos, com ações delicadas, com coisinhas miúdas, cada uma no seu lugar.

Era talvez a minha versão privada de uma casa de bonecas. Mas eu cresci, li romances, e descobri a metáfora do poço.

O poço privado de cada um pode ser uma experiência terrível, mas, pode ser também um lugar de aprendizado profundo, de felicidade conquistada no silêncio da terra, num único raio de sol iluminando obliquamente as profundidades.

Aprendi isso com Harumi Murakami, no seu livro, “A Crônica do Pássaro de Corda”. Desde então minha pequena casa de bonecas da infância transmudou-se para a versão do poço privado.

O problema do mundo contemporâneo, é que parece que todos nós mergulhamos num poço coletivo, e nesse lugar há pouca luz, pouco ar, e nenhum silêncio, senão o clamor terrível da guerra das narrativas, o barulho dos carimbos da lei, a arenga perpétua das torcidas, em uma partida onde se perdeu a ética, o respeito, o zelo pelas coisas do mundo.

Como num imenso jogo de ping-pong, as coisas más colidem umas com as outras e viram notícias do dia. Atentados em Londres e no Irã, estupros coletivos na baixada fluminense, Trump fugindo do acordo do clima, a guerra brasileira, com seus trezentos mil jovens negros pobres mortos, sua elite corrupta e sua política de porões e vozes sussurradas.

Vou sair. Ou seria melhor que eu dissesse que vou ficar em mim, vivendo um cotidiano feito de pequenos gestos, coisas delicadas, cantigas de ninar e hálito de presença de criança?

Vou guardar as chaves do mundo na terceira gaveta da minha escrivaninha. Vou deixar inconclusa essa minha longa crônica desse poço coletivo. Saltarei barrancos, retrocederei, até essa esquina  de lugar nenhum, onde eu mesma, acordada, ouço cantos de pássaros, sinto cheiro do primeiro café, assisto à calma dos gatos nas suas almofadas, canto para um menino ocupado em crescer, invento só para ele a ternura de que um dia também precisará, para tecer o mundo de lá fora.

Vou visitar minha casa de bonecas, arejar seus pequenos cômodos, deixar que o vento brinque com seus ínfimos esconderijos. Trarei de lá, delicadezas, gestos cuidadosos, colheres tortas e invenção de ternuras para o menino que dorme.

Crônica de um Grande Apequenamento

Narrar a história recente do Brasil, sobretudo o capítulo relativo à vitória da presidenta Dilma Rousseff nas eleições de 2014, até a atualidade,quando rege o governo de Michel Temer,  não será uma tarefa fácil para os historiadores. Os especialistas da área hão de se defrontar com alguns problemas fundamentais que lhes darão um volume incalculável de trabalho.

O cenário onde se desenrolam os fatos da república é no mínimo sombrio. Envolve porões de garagens, como no filme “Matadores de Velhinhas”; envolve mochilas de dinheiro, como no magistral enredo de “O Trem Pagador”; envolve sobretudo uma narrativa tão ampla, e tão diversificada, que esse será o principal empecilho para que a história seja contada.

A verdade fria e cristalina é a de que o país se apequena. Como se por artes de uma espécie de lipo-aspiração interior, as figuras políticas do Brasil  vão perdendo estatura, e, entre gorduras e lipídios, esvaem-se os princípios éticos e morais. Os discursos ganham a superficialidade do biscoito recheado,com excesso de glicose e nenhuma substância formadora.

A mentira, o falseamento, a minimização dos escândalos que se sucedem, como no jogo de Pokémon, ganham a centralidade da mídia, em suas manchetes garrafais, e, como num espetáculo macabro, mídia e sociedade deglutem os acontecimentos, até à saciedade que nunca se resolve.

Na república de agora, os personagens centrais são os ratos, com meus mil perdões a esses animaizinhos que só querem defender o seu queijo. Os ratos daqui, são gordos, grandes e perfumados, mas têm armas as mais poderosas. A principal delas é o cinismo, e com este, a invenção da pós-verdade, essa narrativa esvaída de sentido e de verdade, essa narrativa contaminada com o artifício da retórica vazia, e com a única meta possível desse cacho discursivo: Ludibriar e confundir.

A história recente também conta com um personagem central. A própria mídia, que opera como um difusor das falas cínicas, dos desaforos, dos bips, que fingem escamotear a imoralidade. A mídia opera com o silêncio, quando a notícia fere sua linha editorial, ou promove a balbúrdia em horário nobre, sem tempo para acabar o jornal, quando é preciso desalojar um dos reis dessa república convulsionada.

Mas não nos esqueçamos, o personagem mais importante está nos bastidores. Atua em silêncio. Maneja cordéis e apronta cenários para o futuro. É vago e difuso na superfície, mas, nos bastidores, é organizado, persistente e corajoso. Chama-se de diversas maneiras. Aqui vou chamá-lo de O Grande Capital.

Ao grande capital, quando se trata de presidentes, interessa-lhes essa figura política patética, sem moral  e ética, mas, capaz de manejar seu cinismo e sua covardia, com artes de circo de péssima qualidade.  Ao grande capital interessam os ratos, com sua fria esperteza e a capacidade de defender o queijo forjado no lucro e na acumulação. Na mídia, quando acaba o jornal, aciona-se a vinheta dos aplausos e do frouxo de riso dos programas de auditório.

 

(Este post será publicado amanhã, em minha coluna impressa do Jornal A União)