“Aonde está a Chave do Castelo Belo Belo”

Esta é uma das fábulas da minha infância, com a qual muitas vezes minha irmã Maria me fez dormir. No enredo simples havia uma menina, à procura do castelo belo, belo. De castelo em castelo, ia encontrando monstros, de uma, duas, três, até sete cabeças. A cada um ela perguntava: aonde está a chave do castelo belo belo?

Verdade seja dita, eu adormecia antes que a menina chegasse ao terceiro castelo, mas, não me perguntem porque fui buscar essa lembrança antiga nos porões da memória.

O centro de tudo é a palavra castelo. Definitivamente, ainda que não se reconheça de imediato, o ano de 2015, no Brasil, ficará marcado como aquele em que muitos castelos ruíram no país.

Alguns deles haviam sido erguidos com a frágil argamassa dos símbolos, sob o traço arquitetural da mídia comercial privada, a exemplo daquele que classificava o Brasil como o país do futebol, e que acabou ruindo como um frágil castelo de cartas, a desmoronar-se sob o terrível tsunami da corrupção, envolvendo a alta cúpula da CBF, da Federação Internacional, e porque não dizer, de grandes corporações midiáticas.

Um segundo castelo de cartas, em parte, também arquitetado pela grande mídia, está ruindo agora, enquanto digito as linhas da coluna. Nesse castelo, vivia um partido corrupto, uma quadrilha de ladrões, todos vestidos de vermelho, assaltando os cofres públicos.

A mídia trabalhou diuturnamente, de forma paciente, na construção desse castelo, pregando na memória do país, à força da repetição, essa trágica estória de linhas curtas.

Não se sabe na verdade, quantas cabeças tem esse monstro que devora o país, quais as suas reais ramificações, as chaves que abrirão de vez suas portas secretas. O que se sabe é que essa estória não é tão curta, nem seus personagens são somente aqueles vestidos de vermelho.

Talvez estejamos precisando acordar, escancarar todas as portas, olhar bem para todos os monstros, até o da sétima cabeça. Não perguntaremos nada. Basta que olhemos para essa nossa terra, revirada, suja de lama.

Basta que tentemos recomeçar, de um ponto zero, basta que tentemos o exercício de olhar para o nosso país, como ele realmente é, sem edições, sem trilhas sonoras, sem filtros nem efeitos especiais.

Nosso país é uma democracia jovem e cheia de imprecisões, imaturidades. Um imenso continente, em cuja bela geografia, habita outra sócio-geografia, subterrânea, demarcada pela divisão social entre ricos e pobres.

O Brasil dos últimos doze anos, colocou habitantes de vermelho no castelo da política. Eles beberam o trago amargo de que se alimentam os que lá estão. Julgaram que pudessem fazer a política como ela realmente se faz, mas também materializar os sonhos dos mais pobres. Esse foi talvez o seu maior pecado, numa sociedade em que uma elite oligárquica, coronelística e conformada também por novos ricos, tem pressa em apossar-se novamente da chave do castelo belo belo, e reencenar de novo a velha estória de progresso, prosperidade, paz e respeito à família.

Quero olhar para o meu país como ele realmente é. Fraturado, belo, cheio de cadáveres dos nossos sonhos. Quero defender cada pedaço dessas feridas, quero cuidar delas, quero eu mesmo inventar um pedaço da história do meu país.

Uma Carta para Michel Temer

Exmo Sr Vice presidente da República.

 

Fiquei abismada com o conteúdo da última peça que veio da sua lavra, como uma das narrativas dos recentes episódios que engolfam o país numa das suas mais difíceis crises, tão grave quanto àquela que culminou com o suicídio de Getúlio Vargas, ou aquela dos idos da década de sessenta do século XX, culminando com 25 anos de Ditadura Militar.

Quantas estórias existirão dentro da história? E, mesmo antes de a história descer seu manto de passado sobre os acontecimentos, com quantas versões eles podem ser narrados?

Tenho pensado muito sobre essas questões, ao contemplar o cenário vivido pelo Brasil de hoje, o qual agravou-se sobremaneira após as últimas eleições presidenciais de 2014, que reconduziram a presidente Dilma Rousseff ao Palácio do Planalto, resultado que colocou os diversos atores políticos em lados opostos.

Doze meses passados do início desse segundo mandato, o país vive de fato uma guerra que ora amaina, ora recrudesce. Uma guerra que se dá no plano das ideias e que evolui, envolvendo não apenas o parlamento e o poder executivo, mas agora, com maior ênfase, avança para o plano jurídico-constitucional.

O cenário bélico, com o apoio maciço da mídia comercial privada, organiza os argumentos principais com os quais espera envolver e angariar o apoio popular: Do lado dos segmentos de oposição, apoiados pela mídia e por parte significativa do braço jurídico do país, difunde-se a tese de desqualificação do partido dos Trabalhadores, acusado de ser o protagonista do “maior escândalo de corrupção já visto na história brasileira”, portanto inapto para gerir os destinos da nação.

A hora é difícil, e eis que o sr vice presidente lega à história, um contributo rancoroso, virulento, um coquetel montado talvez, sob o beneplácito das forças que empurram o governo eleito pelo voto popular à falência.

Sr Vice, porque ainda se mantém no cargo, numa posição que pode ser cômoda para si, mas é profundamente incômoda para a nação brasileira, talvez a sua carta tenha o propósito de lançar uma última acha à fogueira das insanidades, as quais marcam a situação vergonhosa a que está submetido o Congresso Nacional.

O contributo que o sr deixa para a história recente do Brasil, não é pelo engrandecimento da nação. A sua carta, se posso dizer, tocada pela profunda emoção que experimento, é mais uma das trilhas sonoras de um congresso que enterrou a ética, a defesa da constituição e o voto popular.

Como Viveremos com Elas?

Já são mais de mil casos notificados em todo o país, a maioria deles no nordeste. Penso nelas todos os dias. Constituirão um segmento específico de um grupo maior, as pessoas com deficiência. Pode-se dizer, são vítimas de uma tragédia, uma tragédia construída, alimentada e consolidada por fatores diversos. A má formação genética e o diagnóstico de microcefalia assinado por um médico, são somente os aspectos mais evidentes dessa tragédia. Por trás de cada caso, silenciosas, invisíveis, desfilam as condições de desigualdade, pobreza, condições precárias de saneamento, de armazenamento de água, e tratamento inadequado do lixo. Cada atestado assinado por um obstetra, apresenta as sílabas invisíveis, porém retumbantes, da precariedade do sistema de saúde, e porque não dizer, a precariedade do sistema educacional e de formação do povo. O maior artífice dessa tragédia é também invisível. Um pequeno mosquito, armado com uma terrível engenharia de reinventar-se no Zika-virus, afetando o que de mais precioso há numa sociedade: A infância e os cérebros. Estamos vivendo de fato, um lento e inexorável capítulo trágico no processo de evolução humana. Um capítulo que fala do descarte dos cérebros, sobretudo os mais jovens, desperdiçados em mortandades perpetradas pela polícia, ou em mortes despoletadas por tragédias naturais ou anunciadas, conforme o lamentável desastre ocorrido em Mariana, Minas Gerais. Eis que com sanha renovada, soma-se a esses braços armados, um pequeno e eficiente braço armado com a inoculação certeira, apontada para a infância vulnerável.

O Brasil terá agora que revisar suas estatísticas com respeito aos índices de pessoas com deficiência. As crianças acometidas por microcefalia que puderem sobreviver e ficar entre nós, herdarão uma profunda dívida social do estado, da sociedade, dos sistemas de educação e saúde, de cuja falência, esses pequenos inocentes são as maiores vítimas.

Como viveremos com essas crianças, que terão deficiências graves de visão, de audição, déficits graves na sua formação intelectual? Que mundo legaremos a essas pequenas vítimas? Que não seja um mundo fascista e excludente; um mundo intolerante e indiferente. Que possam essas crianças viver e sorrir, que possam encontrar a plenitude, a fraternidade, o afeto e as oportunidades que lhes permitam ser, na diversidade do humano. E já agora, quando me preparo para as linhas finais da coluna, ouço o alerta na televisão, feito por um médico assustado que diz: – Mães, não é hora de engravidar. E penso comigo: Mães, parem de fazer cérebros, nosso mundo não está preparado para cuidar bem dos seus cérebros, desperdiçados sob os rejeitos de lama, de bala perdida, cérebros comprimidos pela força de um vírus que reinventa com vigor, as múltiplas fórmulas da sua inoculação perversa.