A Gramática da Maldade

Algumas palavras nunca deveriam ter sido inventadas. Não deveriam ter espaço nas páginas amarelas dos dicionários, assentadas entre verbos, substantivos, interjeições e conjunções. Não deveriam sequer figurar entre as frases bem articuladas dos âncoras de televisão, tampouco deveriam ser escritas daquele modo inteligível nos receituários, nos prontuários, grafadas nos boletins de ocorrência, derramadas quase à exaustão nas redes sociais.

Algumas palavras, tendo sido inventadas, poderiam padecer de alguma má formação, que as desobrigasse de encontrarem alguma materialização no estofo da carne, nos corpos machucados, no mais recôndito das almas torturadas, num perpétuo pavor, sem nome próprio e sem alívio.

Algumas palavras, pequeno arranjo de letras, são duras ao serem escritas, lidas, pronunciadas, porque carregam uma cadeia de inúmeras outras palavras terríveis: Ferocidade, egoísmo, crueldade, e todas as outras palavras marcadas à ferro e fogo nos corpos das vítimas: Hematomas, escoriações, sangramentos, esganaduras, arranhões, muitos arranhões, gritos, safanões, esgares e sorrisos diabólicos, mordidas, queimaduras, chicotadas, beliscões, privação de sentidos, bofetadas, soluços, desmaios.

Algumas palavras, ao encontrarem o ato que as define, são como tenazes de fogo, escavando, violando, macerando, penetrando, forcejando, esmagando, aniquilando, sujando, uma, duas, três, quatro, trinta vezes repetindo o ato selvagem, compactado nessa palavra infame de três sílabas, sete letras.

Nos vagões de metrô, nas paradas de transportes, com a palavra torpe, abate-se a alma das vítimas, sua dignidade, sua condição feminina. Com a palavra maldita, transforma-se em lixo o que poderia ser sonho e futuro.

 

 

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