Os dilemas da Crise

Os acontecimentos dos últimos dias na política brasileira são estarrecedores e revelam a verdade sombria: O país caminha celeremente para a deriva, o governo interino não conseguirá cumprir o objetivo falacioso com o qual foi elevado ao poder, conciliar, unificar, apaziguar a sociedade.

As últimas manifestações da presidente do Supremo, Ministra Carmem Lúcia, conclamando a união do poder judiciário, assim como a ação da mesa do Senado, desafiando e não acatando uma determinação judicial revelam um momento assombroso da crise: As forças estão se entrincheirando, ou pelo menos caminham para essa ação, como um último recurso para se proteger da convulsão social que já se instalou em algumas localidades do país.

Esta semana que se encerra hoje, foi talvez uma das mais insólitas dessa situação de crise. O rio de Janeiro assolado por uma amostra da guerra vivida entre o poder político e os servidores públicos; os estados de Minas Gerais e Rio Grande do Sul formulando a agenda da sua própria hecatombe, Ribeirão Preto sem comando e sem qualquer pessoa idônea que possa assumir a prefeitura.

As promessas do impeachment não se cumpriram, nem há probabilidade de serem cumpridas, a médio e longo prazo. A Lava Jato, que prometia encarcerar todos os membros do governo petista, confirmando assim a fábula midiática de que Lula comandava uma quadrilha de corruptos, atingiu proporções inimagináveis e cifras monetárias impressionantes. A Lava Jato apresentou ao país, a corrupção sistêmica que infesta todas as operações de governo e de política, e que tem um rastro tão longo na nossa história, que fatalmente pede freio, cautela e ações de longo prazo para o seu extermínio ou minimização.

O jornalista Franklin Martins, em excelente entrevista dada ao portal Sul 21 na última quarta-feira, tentou traçar um paralelo entre o que se viveu por ocasião do golpe de 1964 e a atual crise política, na qual, por via de um golpe jurídico político midiático, destituiu-se o poder e o mandato da presidenta eleita.

A situação atual, diz ele, ainda que com outras palavras, é diversa da anterior, mas apresenta uma face muito grave. Uma elite predadora, um poder político completamente contaminado pela corrupção, um poder judiciário ocupado com o justiçamento, uma população despolitizada e completamente órfã de uma mídia que promova uma leitura crítica da situação.

O mais dramático porém, radica na qualidade do poder interino que hoje comanda os destinos do país. Ele próprio profundamente contaminado por práticas de corrupção, sem um projeto de desenvolvimento do país, senão o de desmantelamento imediato das políticas sociais, em favor da implementação de um projeto ditado pelo capital rentista, que empurrará as populações menos privilegiadas a um conjunto de sacrifícios que beiram à crueldade.

O que não disse Franklin Martins, eu o digo agora, de modo telegráfico: Já não temos governo, nem país, senão o conflito aberto, com gosto de gás lacrimogênio e o estampido das balas de borracha.

A Sinfonia da Crise

 

Enquanto escrevo a coluna, ouço extratos de O Guarani, executado pela orquestra Tabajara, do álbum comemorativo aos quinhentos anos do Brasil, num arranjo pujante, estilizado. Em alguma medida tento habitar o país do compositor Carlos Gomes, tento construir alguma quilha de tempo de onde possa escutar a sinfonia da crise que ora se leva a cabo, sobretudo no Planalto Central.

O país exibe seus escombros, na economia, na política, nos sistemas de assistência ao povo. A crise fixa suas tenazes em todos os poros da nação, e cada grupo assume posição central nesse ranking macabro da disputa de um poder, hoje, completamente estrangulado.

Mas há, se é que possamos chamar assim, algo de positivo nessa terrível marcha da insensatez, todas as máscaras estão caindo, cada um dos atores dessa crise exibe sua face verdadeira, cada um dos atores dessa crise retira da algibeira o seu trunfo mais importante. E, essas faces, nem todas são bonitas. Esses trunfos, nem todos são frutos da honestidade e da ética, tampouco terão o condão de minorar a crise.

A título de metáfora, posso dizer que a crise política brasileira dos últimos vinte anos tem uma sinfonia. Ela começa altiva, nos governos FHC, com pequenas áreas dissonantes, quando a oposição e os movimentos sociais buscavam enfrentar os males do neoliberalismo que desembocava no país, sob a égide da Escola de Chicago.

Os governos Lula construíram uma musicalidade própria, com ênfase para a cultura popular, os belos cantos guaranis e tabajaras, as vozes da negritude, a bela poética do que há de melhor na música popular brasileira.

A dissonância também ganhava corpo, o mal estar das aristocracias murmurava seu desassossego em tons indignados.

Nos governos Dilma esse desassossego ganhou microfones, expectadores, panelas. A sinfonia esmerou-se em dissonâncias que conseguiram levar a cabo o desmantelamento do governo, com a promessa de um novo país.

Silenciaram-se os atabaques, as vozes das cirandeiras, os ecos da cultura popular. Calou-se o poeta, até no Roda Viva. Ocuparam-se praças e escolas, com gás lacrimogênio e a pimenta da indignação na boca do estômago.

A sinfonia agora é composta por gente grande, branca, rica, cristã, que retira suas máscaras, exibe seus últimos trunfos. E não, eles não são bonitos. Eles exibem um parlamento corrupto, um poder judiciário celerado, digo, civilizado, a soldo de uma suprema corte que controla o modo como o país será fatiado e entregue ao capital rentista e às economias estrangeiras aptas a explorar as matérias primas da nação.

A batalha principal começou e a sua tática é simples: Vencerá aquele grupo que melhor souber usar as armas da desfaçatez, da chantagem, da vileza que impregna as consciências e as contas bancárias.

Não fosse tão grave essa tragédia política, ainda temos lágrimas para chorar o terrível desfecho da Chapecoense. “Vamo, vamo, Chape”, que a Esperança é um lugar pequeno, num ínfimo fragmento do mapa.