Os Estalos da República

Nunca se soube que uma República pudesse envelhecer, recuar para trás, recuperar períodos de valorização de coisas como a desigualdade extrema, a desvalorização do trabalho, a desqualificação do estado, a intolerância para com o diálogo e a plenitude da democracia.

 

A República corre para trás, aos empurrões, à força do que há de mais execrável no jogo político, o chamado “toma lá dá cá”, corre para trás aos estalos, recuperando períodos históricos anteriores a Getúlio Vargas, apressa-se em abrir gavetas facilitadoras, para rasgar a Consolidação das Leis Trabalhistas, para colocar a classe trabalhadora  num lugar onde estava antes dos anos quarenta, sem proteção, sem direito à férias integrais, sem garantias na manutenção da empregabilidade.

 

A República estala por dentro, nos seus alicerces, mas, os artífices desse desmantelamento pregam o discurso do novo, do moderno, do fim do conservadorismo e dos privilégios, discurso que trata os trabalhadores como histéricos, intimidadores, e os seus sindicatos como quadrilhas, que devem ser estirpadas do novo mundo do trabalho.

 

Foi isso o que se ouviu na quarta-feira à tarde, quando da sessão de aprovação, na }Câmara dos Deputados, da Lei de reformas trabalhistas, sobretudo da boca do relator, Rogério Marinho, que com sua voz mansa, levemente enrouquecida, leu seu parecer conclamando às mudanças.

 

A república corre para trás, em velocidade de cruzeiro, num processo unilateral em que divorcia-se radicalmente dos direitos democráticos e populares. Tudo se faz num momento em que o governo interino conta com seu mais alto grau de rejeição popular e quando o parlamento vive a sua mais aguda crise de credibilidade, quando a maioria da sociedade começa a sair do conformismo e passa a se manifestar abertamente contra essas mudanças.

 

Mas o que se aprovou nesta longa quarta-feira, não é moderno, nem novo. A narrativa pode ser pomposa: Monetização da vida útil das pessoas, trabalhador horista, valor do negociado sobre o legislado,a narrativa é de fato pomposa, mas as consequências do processo serão desastrosas.

 

O golpe maior será dado contra os sindicatos e centrais de trabalhadores, que já vêm sendo enfraquecidos por campanhas menores, porém sistemáticas. O fim do imposto sindical e o estabelecimento da negociação direta entre patrões e empregados vai minar de vez a força dessas organizações.

 

A república corre para trás, suas estruturas estalam, desmantelam-se modos de fazer política. Aos trabalhadores, resta inventar de novo a força da sua luta, nas ruas, nos postos de trabalho, nas greves, até que não possam mais cruzar as mãos em defesa dos seus direitos.

 

 

A Fábula Revificada?

A Fábula Revificada?

A mídia comercial brasileira, liderada pelo sistema Globo de comunicações, após a divulgação da lista do Fachin, com as mais de novecentas horas de vídeos gravados com os depoimentos dos delatores, retomou com gosto o trabalho de revificação da fábula de que o partido dos trabalhadores instalou-se no poder como a maior quadrilha de ladrões do dinheiro público, tendo como chefe o ex-presidente Lula.

O modus operandi é o mesmo dos últimos treze anos. Destacar os trechos em que a fábula pode ser reconfirmada, e dar-lhes evidências em todos os telejornais, ignorando ou retirando do caminho da narrativa, tudo aquilo que possa perturbá-la ou contradizê-la.

Dezesseis partidos aparecem como alvos das delações. Só o candidato à presidência pelo PSDB, o senador Aécio Neves, tem cinco inquéritos na lava jato. Mas, o jornalismo está empenhado em dedicar suas horas nobres ao caso Lula, e de quebra, encontrar os crimes para fechar a conta do impeachment da presidenta Dilma. O cardápio é o mesmo dos últimos treze anos: A reforma do sítio de Atibaia, as palestras de Lula, as doações de campanha. Fico imaginando o setor midiático que poderia ser chamado operação Lula, com estagiários, jornalistas mais jovens, todos empenhados em destacar os trechos que vão virar manchetes, e despachá-los para os ancoras de tv, devidamente recortados e descontextualizados.

Editar, mascarar, silenciar. Longos trechos emblemáticos podem passar inteiramente despercebidos, como o que disse Emílio Odebrecht sobre o modelo de financiamento da política brasileira. O caixa dois, disse, existe na política há trinta anos, e mais, toda a imprensa sabe disso, e se omitiu, como omitiram-se as autoridades fiscalizadoras, o poder executivo e o parlamento.

Manipulação grosseira, classificou Mario Marona, ex-editor do Jornal Nacional, em seu perfil no facebook, comentando trecho destacado pela rede globo, em que Emílio Odebrecht narra o episódio em que a então presidenta Dilma soube dos maus feitos e tentou coibir os abusos com broncas e demissões.  A Globo explora o trecho em notícia que diz exatamente o oposto. Manipulando, comentando, etoma a prática da criminalização da ex-presidenta.

As lições a serem extraídas do papel da imprensa nesses treze anos são duras e desalentadoras. Simular surpresa e tomar como notícia bombástica, um sistema corrupto instalado no país há três décadas, com o beneplácito de todos os poderes e o silêncio cúmplice da imprensa, revelam o desapego que se tem pela democracia, ali no âmago das forças que deveriam preservá-la.

Mas a situação é ainda mais cruel. O país está entregue a um poder judiciário preocupado com o justiçamento de alguns e um poder midiático empenhado no julgamento e na condenação prévia dos seus inimigos políticos. A aventura pode sair muito cara ao país. O fascismo coloca na linha de frente os seus líderes, de dentes arreganhados, prontos para o próximo bote eleitoral.

Uma outra questão amarga precisa ser feita: O que mais a mídia está silenciando? Em que outros escândalos a imprensa tem se omitido? Operação Zelotes, Furnas, Telemig, e o mais recente escândalo da venda do país ao capital estrangeiro, quando e como a mídia brasileira vai pautar essas questões?

O Mundo do Divertimento Perpétuo

Sim, não há dúvidas de que caímos no planeta do divertimento perpétuo, e tudo pode ter começado há muito tempo, depois do progresso haver rasgado a terra e os mares para conectar o mundo através dos cabos, depois de os continentes haverem sido fatiados, no século XIX, em zonas de cobertura informativa, depois de havermos inventado o lead, essa pequena pílula informativa apta a capturar um leitor apressado, de espírito fugidio, sofrendo dessa síndrome do consumo rápido, e sempre a pedir mais e mais, nesse fast-food noticioso.

Eça de Queiroz falou desse sintoma nascente, flagrou essa doença dos primórdios do século XX, dessa satisfação em se poder, por dentro desse coleante amálgama de fios e cabos, palpar o mundo, subtrair suas distâncias, comprimir em pequenas pílulas de informação, o saber sobre as coisas.

Evoluímos tecnicamente, suprimimos os cabos, miniaturizamos as telas, e, aumentou a nossa fome por informação, proporcionalmente à capacidade da matéria prima ofertada, numa espécie de gigantesco banquete da notícia rápida, sobre tudo e qualquer coisa.

Gulosamente insatisfeitos, presas de um íntimo divertimento, deglutimos de tudo: A fofoca, o jogo, a tecnologia, a guerra, as mortes por gás sarin, o incêndio no campo de concentração francês, as duras horas dos refugiados comprimidas em pequenos bits informativos, a prisão do criminoso de colarinho branco, a bala perdida, a criança encontrada na lata de lixo, a dor da menina de vinte anos, a sua culpa, desvelando a culpa ancestral da mulher submetida, essa culpa exibida na tevê, sem anteparos, com a clareza das imagens digitais e a terrível cobertura do embrutecimento.

Você poderá pular o anúncio, esse breve atalho que pode levá-lo ao reinado do consumo, ali onde você também se diverte. Você pode pular o anúncio e voltará a experimentar essa satisfação íntima pelos pacotes de estórias ofertadas. A briga entre Trump e Putin, a refrega da lava jato, o embate entre os chavistas e a oposição venezuelana, a chuva de desaforos grotescos de Bolssonaro. A usurpação do poder de uma presidenta eleita, o embate entre sindicalistas e as reformas do governo Temer.

É como se nunca houvéssemos saído da caverna platônica, mas, as sombras que se nos apresentam são coloridas, fartas, há som da melhor qualidade para alargar cada vez mais o nosso sorriso nesse planeta do divertimento perpétuo.

E como sorriem os nossos jornalistas! Diante das câmeras e fora delas, e ainda aproveitam o seu sorriso para uma vinheta. Nossos jornalistas também habitam o mundo do perpétuo divertimento. Retalham os fatos, extraem o que há de mais superficial, para que nada atrapalhe a bela orgia diversional. São bons nisso, os nossos jornalistas. São bons em sorrir, sorrir até a última gota, são bons em esticar a corda, o cabo de guerra, na infância triste do nosso mundo desenvolvido.

E não, não há somente a caverna platônica. O mundo está todo dividido em cavernas, devidamente iluminadas, servidas por câmeras, drones, microfones de todo tipo. Sitiados, envoltos em nossas trincheiras, atiramos pílulas de informação uns nos outros, distribuindo curtidas, reações diversas,  frouxos de riso, com a tragédia e o futebol, tudo servindo ao repasto do divertimento perpétuo.

O Jornalismo Mínimo e as suas Vítimas

O jornalismo declaratório faz suas vítimas, e elas são muitas. Toda a sociedade distancia-se, ignora ou, em alguns casos, fica indignada com esse tipo de narrativa, que divorcia-se vertiginosamente do ideário clássico que havia pensado a imprensa, os repórteres, a comunicação e a sua capacidade para fortalecer as democracias, harmonizar o tecido da sociedade, compor uma esfera de opinião pública crítica e esclarecida.

É desanimador o desfile de mediocridades na tevê, nos portais online, nos impressos. O modelo mínimo de jornalismo tem suas máximas: Fique o mais distanciado possível do fato. Só diga aquilo que disserem pra você. Apresente números, muitos números, até ao empanturramento, mas se comentar, o faça como se estivesse na mesa da cozinha, debicando o que todo mundo já sabe. Não perturbe o ambiente com investigações próprias, com apurações profundas, com textos autorais. Guarde isso para um blog pessoal, ou para quando for demitido.

Se fizer uma reportagem longa, bombástica, sente-se em cima dela, guarde-a para o “Número Zero”, aquele jornal do romance de mesmo título de Umberto Eco, que estaria ali, sempre pronto para chantagear alguém: Um político, um magnata, um vendedor de petróleo.

Morreu um homem num condomínio em João Pessoa. Fique longe disso. Diga o que se diz sempre nesses casos: Control-c control-v e pronto. “Não se sabe o nome do homem, não se sabe as razões do crime, o que importa é mais esse número flácido, sujo de sangue, caindo na estatística fria da violência”.

Ataque com gás sarin na Síria. Com o rabo do olho, mire o que estão dizendo as agências de notícias mundiais. Só existem quatro grandes agências mundiais. Repita o que elas dizem, papagueie até à exaustão, garanta suas vinte linhas, sem dissonância, sem divergência, que Deus o livre de apuração e aprofundamento!

Ataque terrorista na Rússia? Mire para onde vai o fluxo. Ignore isso. Notinha curta, um box talvez. Quanto vale a morte de cinquenta chineses? Cem africanos? Faça uns cálculos rápidos. A morte de um americano, de um europeu, essas sim, dão manchetes.

Reforma da previdência? Fique do lado de quem lhe paga os salários. Faça propaganda aberta. Ameace os trabalhadores, combata greves, edite passeatas, porque dessa vez os menores números serão a manchete.

Está cobrindo a política? A receita é simples. Coloque o PT nas tragédias. Enfatize isso o dia todo. Acompanhe o fluxo. Invente uma pérola do tipo Cristiana Lôbo que afirma: “De tédio a gente não vai morrer”. Não sabe ela que sua voz, sua narrativa, tem jeito, eco e  cheiro de catacumbas.