Memórias numa Lata de Biscoitoes

Guardava tudo lá. Tuas cartas, as parcas fotografias de família, um panfleto de Café Filho, os documentos da casa, folhinhas amarelas de calendários, tudo lá, naquela lata de biscoito que você trouxe para ela, numa tarde quente de janeiro.  Eu era tão pequena! Mas me lembro de você ter chegado com sua mala surrada, trazendo nos braços, no corpo todo, uma distância tão distante, tão distante,  uma distância tão distante que você não tinha mais palavras. Me lembro quando você deu a lata de biscoitos à minha mãe, me lembro do sorriso dela,  a apertar contra o peito a sua pequena fortuna. Minha mãe olhando nos seus olhos, pesando seu silêncio, tentando apreender de você todas as dores, as saudades, as visões de morte. Minha mãe procurando o filho que já não era seu, o seu Raimundo.

E você soltou no meio da sala o que agora lhe pertencia. Você disse à minha mãe que agora era mestre de obras. Você disse aquilo como se rezasse, disse aquilo como se tentasse desvestir a pele de uma cidade construída sobre os seus mortos.

Me lembrei de tudo numa noite também distante, enquanto assistia “O Romance do Vaqueiro Voador”. Mistura de linguagens, notícia sem jornal, e você no meio de tudo aquilo, raimundo. Você candango, cuspindo cimento, cuspindo a reforma, você tentando conter o bramido da saudade no peito sem gibão. Você vendo aquele montão de homens morrendo, você ocultando a lágrima e rezando, padre nossos pesados no terço da minha mãe.

Vaqueiro voador, último abraço de cimento e ferro.  Com você também foi assim mano. Abraço retardado de cimento e ferro, noutra construção, noutro lugar. Rio de Janeiro? Onde você estava quando a sina do vaqueiro veio lhe pegar?

E agora, quando tento atualizar essa carta que não vai chegar até você, minha mão de repente fica paralisada, as palavras como que se afastam de mim, e só sinto a dor pela ausência, de Marielle, arrancada brutalmente do seu ativismo, de crianças e crianças mortas nas favelas desse Rio de Janeiro onde você fincou morada e de onde se foi, sem entender direito o que disse a música no seu rádio de pilhas, “ viver é melhor que sonhar”.

Sim, mano, ele tinha razão. “Viver é melhor que sonhar”, e cada certeza que a gente arranca desse punhado de sílabas,  dói como corte de faca amolada. Viver é melhor que sonhar. E é por isso que estamos sempre nos juntando, para dizer: Marielle, presente! Anderson, presente! Onilma, presente! Viver é melhor que sonhar mano, mas agora, em todas as horas, estamos chamando os que nos são arrancados pela morte brutal dos nossos dias, para embebê-los na nossa saudade, para envolvê-los com as últimas flores brancas e vermelhas do nosso tempo, para viver, no íntimo das nossas  memórias, o brilho feliz dos seus sorrisos.

 

O Velório de um País

O meu coração está pesado. As palavras dessa crônica, estão todas tingidas da profunda tristeza que me invade, por estar há tanto tempo, com meus irmãos, meus amigos, meus colegas de trabalho,  com tantos e tantos cidadãos e cidadãs, mergulhada nesse longo velório sem tréguas, velório do meu país.

E como é difícil velar um país que se despedaça e morre, nas praças das cidades grandes e pequenas; nas ruas e vielas das periferias; nas favelas ocupadas por forças do exército e da polícia.

Um país que morre de modo explosivo, um país que morre na sua infância pobre, vitimada por balas perdidas, todos os dias.

É tão difícil velar um país que oculta-se na covardia e na vileza, para estraçalhar o sorriso da cria da maré, Marielle, silenciada no meio da sua luta, calada brutalmente, enquanto as suas palavras de força e encorajamento de mulheres negras ainda reverberam naquela roda de diálogo.

É tão difícil velar um país onde Marielle Franco não pôde voltar pra casa, não pôde pela última vez beijar sua filha, é tão difícil velar um país onde Marielle Franco será agora somente mais uma cifra na estatística brutal da violência no Rio de Janeiro.

É tão difícil velar um país onde já não há lágrimas para regar o desespero, a vulnerabilidade, a incerteza, o medo, o risco de viver.

É tão difícil velar um país onde a democracia foi ferida de morte, um longo e triste espetáculo de guerrilha política, onde venceu mais uma vez a oligarquia, o complô dos trusts, as bancadas da bala e do boi, que agora se apressam na delapidação do estado, na destruição dos direitos sociais e civis, no aprofundamento da pobreza e da miséria.

É tão difícil velar um país onde não se pode calar o espetáculo da tv, onde não se pode interromper o jornalismo mínimo e factual, onde não se pode atalhar a sanha noticiosa sobre os comunicados, do presidente, dos ministros, das forças armadas, onde não se pode pedir um silêncio profundo dessas máquinas de divertimento perpétuo, para que se escute o pranto, o soluço, o último grito, o gotejar de sangue de vítimas inocentes, crianças, muitas crianças; jovens e idosos, a maioria do nosso povo negro que  morre aos bocados,  nas máquinas de matar do crime organizado, nas máquinas de matar das forças de ocupação.

É tão difícil velar um país onde o sangue e as lágrimas são as únicas sílabas desse decreto final, escrito abertamente, nessa noite infinita, em que não se pode voltar pra casa, abrir seu portão com sua própria chave, calçar seu chinelo velho, bebericar um café com leite, sentir a satisfação do dever cumprido.

É tão difícil velar um país onde Marielle Franco não mais poderá cumprir seu mandato, de defesa do povo pobre da maré, das favelas do Rio de Janeiro. Tão difícil é velar esse país que fecha com mãos trêmulas, o caixão de Marielle Franco.

À Craseado: Um Conto para as Mulheres

 

– O que será que uns estimulozinhos extra teriam feito comigo? Agora é tarde pra pensar nisso. Só me restam os ácidos gamálicos, por que então essa teimosia das minhas células, a desejarem ser o que nunca eu vou ser?

Explico-lhes todos os dias: A carta de vocês foi traçada com letras grossas e curtas de quem escrevia pouco e ruim. Onde vocês se forjariam senão naquele povoado de duas ruas, uma igreja pequena, a casa do prefeito sendo a maior de todas?

Comadre Alta sendo a Comadre da minha avó, que levava seu Joãozinho pra visita de domingo, brinca daqui, brinca dali, Joãozinho e Amélia casados, forjaram a trilha curta por onde vocês desembocariam, na geração vindoura, aquela em que minha mãe, Otacília, casou-se com Tiago, filho de Jó, compadre do meu avô.

Quando penso nesse caminho de porta-cancela, nesse campo de mato ralo onde vocês se forjaram, fico impressionada de haver me distanciado tanto do que fora a primeira geração, depois a dos meus pais, depois a minha.

Dito tudo em traçado curto, as mulheres da primeira geração tinham vida que podia ser escrita em papel de embrulho de armazém, letra grossa e grande, frases de palavra única. Cozinhar, lavar, parir. Só tinha uma frase um pouco maior nessa agenda velha: Satisfazer ao marido.

E vocês, células impertinentes, a me perguntarem pelas crases. Tinha crase sim, tanto na vida da minha avó, quanto na da minha mãe, pois elas iam juntas à missa de domingo, levando as sandálias nas mãos, pra não sujarem a igreja de lama.

Falando no crase, tenho certeza que minha avó nunca pensou sequer em algo parecido. Minha avó, quando pegava num lápis, era pra ameaçar meu tio Raul,quando ele entrava em casa, atazanando todo mundo.

Minha mãe, de leitura pouca, leitura de folhinha e de bula de Regulador Xavier, será que minha mãe sabia o que era um a craseado?

– Sabia não! Berram vocês, alto e bom som, como se se tratasse aqui do “boca de forno”.

Pasmada, vejo que a grande distância, a grande diferença que marca a minha vida em relação às vidas da minha mãe e da minha avó são os craseados. Fui à escola, fui à formatura, à igreja, quando do casamento, à juíza, quando do divórcio. À Europa, à bolsa, para as aplicações, à bienal, à noite de autógrafos.

E agora, vou à minha timeline, ver o que se passa no mundo virtual, ver o que dizem de mim os meus seguidores. Fazer o que minha avó e minha mãe faziam, aos gritos, falando das suas janelas para as das vizinhas, num tempo sem crases e sem banda larga.