O Processo Continua na Vida Real

Na segunda-feira passada, em companhia do meu amigo Pedro Nunes, fui assistir o documentário “O Processo”, realizado por Maria Augusta Ramos e que narra de maneira cirúrgica, os episódios recentes da política brasileira, os quais culminaram, em 31 de agosto de 2016, com o impeachment da presidenta Dilma Rousseff.

Rever a súmula daqueles acontecimentos, exposta no longa de mais de duas horas, amplifica em nós, a angústia que nos tomou de assalto nesses dois anos, mas sobretudo recupera a nossa perplexidade pelo que foram capazes de arquitetar, os artífices do golpe. Apearam do poder, uma presidenta eleita com 54 milhões de votos, que não cometeu crime de responsabilidade. Com uma narrativa regada à falácias como “ponte para o futuro” e “salvação nacional”, entregaram o governo do país ao núcleo dos que delinquem e perpetuam as práticas de corrupção que infestam as hostes do poder político, do estado e do empresariado.

O documentário de Maria Augusta, que tem lotado sessões de cinema desde o último dia 17 de maio, já arrebatou diversas premiações: Melhor longa-metragem internacional no Festival Documenta Madri – Espanha; Melhor Filme no Festival Visions du Reel em Nyon – Suíça; Melhor Filme no Festival Indie – Lisboa; Grande Prêmio do Festival Internacional de Berlim. Regado à imagens ora chocantes, ora espetaculares, o filme inventaria a falência de um parlamento apodrecido, assim como a hipocrisia da principal autora do pedido de impeachment, a advogada Janaína Paschoal. É uma aguda e terrível fotografia de um parlamento corrupto, empenhado em sacrificar a democracia e o estado de direito, a fim de estancar processos de investigação e de quebra, instituírem um programa neoliberal sem qualquer perspectiva de apoio popular.

Conforme me relatou Pedro Nunes, ao final do documentário “vemos um tempo com nuvens fechadas com as fumaças de gás lacrimogêneo e bombas de efeito moral lançadas em direção aos protestos pacíficos. Há sinais de INDIGNAÇÃO mesmo com as balas de borracha e estampidos dos fuzis que ecoam na sala de projeção. As fraturas estão literalmente expostas e há cantos de resistência entoados firmemente por mulheres, homens e crianças”.

E o que Maria Augusta nos mostra, nas cenas finais do seu documentário,  é o país pós-Dilma, executando seu balé macabro de recuo para trás, para o aumento dos índices de pobreza, os cortes dos direitos sociais, a restrição nos investimentos em saúde, educação, e, o espetáculo dantesco da corrupção, dentro do governo.

O país pós-Dilma, que extrapola a agudeza da narrativa de Maria Augusta, e persiste na realidade, com a política desastrosa de reajustes diários dos combustíveis. Um país parado, executando seu balé macabro, rumo à desordem, ao caos, com vozes dissonantes pedindo a volta da ditadura militar. Um país sombrio, a caminho da tempestade.

E eis que chega a quinta-feira, 24 de maio. Reviso a coluna, ilhada em minha própria casa, com a certeza de que “O Processo” continua na vida real.

Moscas não Pagam Aluguel

De madrugada as moscas não perturbam ninguém. Somente as formigas, as baratas, os ratos. Sobretudo aqueles mais ousados e famintos, chegam perto dos humanos, remexem nas suas coisas à busca de um jantarzinho.

As moscas só souberam pela manhã, que alguma coisa muito grave havia acontecido na sua morada na rua Pai Sandu. Moscas não precisam de um edifício grande para viver, pousar. Um pedaço de entulho pode servir. Mas aquele montão de entulhos cheirando estranhamente já não lhes vai oferecer nada que valha a pena.

Moscas não pagam aluguel, transitam livremente e pousam em lixo acumulado, em louça suja, em barracos e prédios   infectos, maravilha de céu para seus volteios!

As moscas nunca poderão contar sobre aquele acontecimento. O que saía de dentro do prédio finalmente, incandecentemente  iluminado, era desespero humano, era pavor, de crianças, adultos e velhos.

Eram pessoas iguais a mim e a você, muitas delas com sotaques nordestinos, que o prédio fervente vomitava às centenas, na praça madrugadora. Gente atônita fitando apavorada o desmanche medonho. Sonhos despejados como trouxa de roupa suja. Pés descalços lambendo a escada que pouco depois era devorada pelo fogo.

Gente igual a mim e a você. Só que a gente dormiu a noite toda, e só viu pela tv, pequenos flashes dessa gente atônita, verdadeira sociedade anônima, amanhecida sem teto, cheirando a rescaldo, cheirando a pavor, esse estranho cheiro de estricnina derramando-se por veias e artérias.

Quando as moscas chegaram não entenderam nada. Passearam por braços e pernas fedorentas, e depois foram procurar outro endereço. Moscas não pagam aluguel, nem precisam de cabos de aço para se salvar.

As moscas jamais conseguirão entender, com seus cérebros minúsculos, o tamanho dessa tragédia. Moscas só entendem de esgotos abertos, pratos sujos e engordurados, roupa mal lavada, excrementos à mostra, cadáveres putrefatos.

Moscas não compreenderão uma letra que seja dessa frase comprida: Gente igual a mim e a você, falando como nós, caminhando, atropelando, saltando, com dois pés, iguais aos meus e aos seus. Gente como nós, com sonhos, esperanças, desejos, vontades, só que sem eira nem beira.

Gente como eu e você, mas que passa a vida sendo enxotada como as moscas. Gente como eu e você, vivendo de pouso em pouso, levas e levas de pessoas como eu e você, apodrecendo como estorvos, à beira da vida. Gente como eu e você, vivendo como as moscas, a um preço terrível: gente como eu e você, erguendo a cidade grande, limpando suas latrinas, jogando e depois catando seu lixo, lavando suas sujidades, gente como eu e você, vivendo como as moscas, só que pagando aluguel.