Cochichos de Deus

Posso dizer que nossa Páscoa começou na sexta-feira pela manhã, quando eu, Mayra e Gabriela, mochilas às costas, embarcamos rumo à Aldeia, em Camaragibe, Pe, para o retiro de ioga na pousada Meteora.

A proposta era nos desapegarmos do mundo cotidiano, dos perfis e das senhas, para nos reintegrarmos com a natureza, meditarmos, escutar as lições dos mestres e dos santos, cantar e comungar a alegria genuína e sem artifícios, dizer coisa nenhuma, com a boca cheia de sorrisos e de jambos.

Foi assim. E foi mais. Habitamos um mundo paralelo, escutamos o vento a desfiar sua poética por entre as árvores e a fina poeira das folhas secas.

Escutamos o chamado dos pássaros, vimos a lua antes do sol acordar, desafiamos os nós do nosso corpo, na grama cheirosa, enquanto as cigarras cantavam e riam de nós.

Meditamos. Permiti que a estrada me habitasse, contaminasse as minhas células do anseio da partida. Saí de mim e vaguei pela terra, feito inseto, feito planta, feito bicho do mato. Ergui-me de um salto e já não tinha nome, senão um ponto no oceano, a encharcar-me de vida.

E meditamos mais, inventando bolas azuis, amarelas, violetas, rosas, sendo as bolas de Deus as mais engraçadas, feitas do mais tolo material que há, bolas de sucata, lixo cósmico reciclado, a embaterem em minha cabeça, minhas bochechas, bolas grandes e pequenas, feitas da pura graça do ser.

Abracei-me à uma árvore velha, que em sua meditação, contou-me das viagens que faz, entre a alquimia do ser e do não-ser, na corda bamba dos longos intervalos entre vento e silêncio, em que a palavra urdida não se diz, senão como um mantra criador.

A velha árvore me contou dos cochichos de Deus, das suas longas gargalhadas, da gritaria que faz quando precisa de concreto para inventar seus novos mundos.

Na última noite, uma cerimônia para nossos ancestrais. Invoquei os índios, os negros, os celtas. Nosso pequeno mundo era simplesmente grande, feito somente de um pouco de lua, na terra, nossa pequena fogueira e um círculo de mentes acordadas, vigiando o agora. Naquela noite conheci meu nome índio, tecido como um mantra que desce a corredeira e se perde na água.

Regressamos ontem. Encontramos o mesmo mundo fraturado, com seus acidentes, suas depressões, suas montanhas de entulhos, sua guerra de egos, seus aparteids, sua intolerância.

Descobri que regressar é ficar um pouco lá, numa estranha coreografia de tentar equilibrar essas duas esferas, de trazer para o mundo de cá, o cuidado e a delicadeza, para a ancoragem de alguma alegria, alguma serenidade, paz.

 

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