Alice no País de Si Mesma

Comprar um livro, desembrulha-lo e começar a ler. Não, não foi propriamente assim que aconteceu. Fui ao lançamento do novo romance de Maria Valéria Resende, na noite do último dia 21 de maio e lá mesmo fiquei sabendo que além do livro em papel foi também publicado um ebook.

Corri pra casa, entrei no www.amazon.com.br, busquei pelo título Quarenta Dias e pronto. O livro despachou-se para o meu ipad e imediatamente mergulhei no mundo de Alice, surpreendente, simples e complexo ao mesmo tempo, o novo mundo de uma Alice despejada à força de João Pessoa para Porto Alegre, um mundo insuspeitado entre as dobras de uma cidade, a abrigar dores, cansaços, solidariedades de ocasião, histórias de sofrimentos de mãe a fazer liga com os seus relacionamentos.

Ainda não acabei a leitura. Resisto em abocanhar a história de um sorvo, vou lendo de vagar, parando em alguma esquina improvável, querendo e não querendo antecipar o final que Valéria destinará às andanças de Alice.

Alice, de que argamassa Valéria a tece? De que liames é feita essa planta humana, resistente ao sol, à chuva, ao frio de Porto Alegre, aos sonhos maus, dentro do apartamento claro, aos bons sonhos, sob alguma arcada, enfestada de gente andarilha como ela?

Rebeldia. Terna rebeldia. Este é o cimento de que é feita Alice. Inconformada com os desígnios que lhe roubam de assalto a liberdade, ela foge do mundo organizado e uniforme, e, ao modo de uma bengala, encontra uma perda, uma mãe, um vago nome de um filho nordestino perdido.

Alice foge, levando consigo o vazio, simulado por uma sala sem móveis, um telefone a tocar, sem ninguém para o atender.

Valéria sabe que Alice não precisará de muito. Um caderno em branco, grosso, um velho caderno com a Barbie na capa, servindo como a sua espécie de ponte entre o país de si mesma e o mundo, vasto mundo.

Leva consigo o desassossego, fala interior, profusa, tantas vezes tocando em cordas de sonhos e angústias tão próprias de cada um de nós, escrita

que me tomou de assalto, os quarenta dias de Alice, invadindo meus intervalos de tempo nessa minha semana de fim de maio, os quarenta dias de Alice transbordando para além dos meus afazeres, os quarenta dias de Alice espraiando-se pela minha noite, esse monólogo escrito em um caderno grosso, velho, falando comigo em toda a sua profusão de vozes.

Sem complacência alguma, Valéria Resende, com sua mão firme, empresta ao mundo de Alice a sua magistral narrativa, e, ao modo de uma diretora oculta por entre as cortinas, vai lhe dando leves toques no ombro, alguns empurrões, para a deixar solta, sozinha, a fazer suas alianças no acaso das esquinas, das vielas, das arcadas, a buscar um lugar onde descansar a cabeça em um banco de hospital.

Quem sai ganhando é o leitor, irremediavelmente preso ao passo dessa andarilha, aos seus encontros e desencontros, a vasculhar lugares improváveis dentro da cidade.

E mais não direi, porque ainda não li tudo, e quero encostar agora mesmo o meu passo ao passo de Alice.

 

(Este post será publicado amanhã, em minha coluna impressa do Jornal A União)

A Alegria se foi

Faltam pouco mais de vinte dias. A Copa vai chegar, mas o meu país, como se fora um gigantesco monstro enjaulado, assombrado por um banho de água gelada, espreita para fora, espera, avalia, sem um naco qualquer de alegria.

Eu própria, olhando para esse cenário, faço a pergunta infantil e tola: Então não somos o país do futebol, não queremos ficar com a sexta taça do mundo, não exportamos os melhores craques, para fazermos a alegria das maiores torcidas do mundo?

Sim, um fato é inegável. A alegria se foi. Há uma revolta, ora represada, ora exposta, que ameaça a Copa do Mundo, essa festa dos campeões, do esporte, das indústrias dos tênis, das bebidas, dos alimentos fast-food, dos automóveis.

Não há como negar, nesse grande caldeirão onde antes imperava a alegria, a ira, a revolta, feito água fervente, tendem a transbordar, para a incompreensão dos dirigentes, dos vendedores, dos organizadores, dos comunicadores desportivos.

Você se lembra como foi das outras vezes… O país todo vestido de verde e amarelo, as vitrines abarrotadas das quinquilharias, todas sendo disputadas a gritos, cheios de alegria, dos vendedores, dos compradores, dos torcedores…

Agora não. Agora, a simples menção da Copa gera um protesto. Pneus queimados, correria, balas de borracha, privadas sendo atiradas de pontos estratégicos, bananas, muitas bananas.

O mundo é outro. As pessoas trazem a sisudez dentro e fora das máscaras.

Há aqui um mundo todo a ser contemplado. Um mundo abarcado por três, quatro décadas, duas gerações talvez. Um mundo dos pais e dos avós, saídos da ditadura, gente que lutou para ver a política como um lugar de emancipação. Um mundo de pais e avós cansados, de filhos descrentes.

Um mundo no qual a descrença, a desesperança e uma ira perigosamente alerta tomaram o lugar da alegria, do encantamento por ver uma bola a girar com graça, com elegância, com maestria, a trazer as taças.

A copa que se jogará daqui a pouco, não é mais a copa dos brasileiros. Nas casas, na rua, no bar, na praça, não se fala em Copa. Armam-se manifestações, acumulam-se pedras, pneus e bananas..

A copa que se jogará daqui a pouco, é um mega-espetáculo publicitário, curiosamente brilhante, mas completamente afastado do povo, da sua vontade, dos seus cantos de alegria, represados.

Aprontam-se estádios gigantescos, distribuem-se os ingressos, esmeram-se os artistas para os últimos ensaios, os políticos seguram as chaves das cidades cede e intimamente, escutando o bramir surdo das ruas, perguntam-se à medo e incredulidade: Então, o que é que eles querem?

Apreensiva, eu também conto os dias. Espero a Copa, mas não estou alegre. Sei que vou me emocionar quando se iniciarem os primeiros acordes do Hino nacional. Sei que vou gritar alto, junto com todos os da minha rua, quando a primeira bola brasileira invadir a rede adversária. Mas não, não estou alegre. Não adianta ensaiar o samba, o frevo, porque já conheço os tons da tenebrosa canção que se apronta, toda feita de ira, dos ruídos estranhos das balas de borracha, misturados aos rojões.

 

(Este post foi publicado em minha coluna impressa do Jornal A União, em 21 de maio de 2014).

Fast-Food Bizarro

Nosso mundo é louco. Nosso mundo é louco e triste. Nosso mundo é louco, triste e bizarro. Senão contemple as notícias. Faça uma busca no Google e se espante com os mais de um milhão de achados para a chamada “meninas sequestradas”.

            Na Nigéria, o movimento islâmico extremista Boko Haram, assombrou o mundo ao afirmar que sequestrou, numa escola do norte da Nigéria, mais de duzentas meninas com idades entre dezesseis e dezoito anos e que as vai vender como escravas, em cumprimento às ordens de Deus.

            No Brasil, a crueldade instantânea e corrosiva também não tem limites. Ou você não viu na tevê, o linchamento da mulher, acusada nas redes sociais, de ser sequestradora de crianças para rituais de magia?

Fabiane Maria de Jesus, dois sobrenomes fortes, mas não adiantou. Foi espancada até à morte, por conta de um boato e de um retrato falado publicado no facebook.

Nosso mundo é irreal, ou eu deveria dizer hiper-real? Pois olhe as pessoas, no trânsito, no shopping, na praia, nos bares, todos vivendo vidas paralelas, postando fotos de cada um dos seus instantes, varrendo suas pequenas telas, transmitindo, lendo rapidamente milhares de postagens, ficando em estados de alerta, prontos para o vale tudo?

            A violência virou fast-food, que você pode deglutir na tevê, no rádio do carro, nas redes sociais, ou pode até registrar, em tempo real, mesmo da janela do seu edifício, para depois postar as imagens sangrentas, que são então compartilhadas, curtidas, comentadas.

            Nosso mundo sangra por todos os poros, nossa cultura tem a pele esgarçada, triturada por esses milhões de passos trágicos de uma dança bárbara, inventada aqui e agora, na qual a morte virou a única moeda.

            A morte, esta incansável senhora de mil faces, já nem tem tempo de recolher os seus cadáveres. Rápida como um raio, que há que levantar leitos e carruagens para as almas que partem, a morte espanta-se de ver tantas mulheres e meninas sendo descartadas.

            Enquanto se apressa, porque sabe que terá de acudir as almas das primeiras meninas vendidas na Nigéria, a morte ainda encontra um átimo de segundo para um naco de filosofia: ”Vida, que palavra é essa completamente esvaída dos seus sentidos? Eis que este é o meu reino, eis que a golpes de privada, de cutelo, estampidos e facadas, expurga-se a juventude, esfola-se e mata o templo mesmo onde a vida poderia ser germinada”.

            Á pressa, a morte mira de relance a decoração de um grande magazine com suas mega-promoções para o dia das mães. Dá de ombros e deleita-se com o som da tropelia dos seus mil pés, a saltitar por entre os rejeitos de vida descartada.

            Avança, acode aos múltiplos chamados, esbarra e dá safanões pra cá e pra lá, mas ninguém se dá conta, olhos fitos em seus dispositivos, fascinados por essa vida paralela a escorrer pelas linhas de transmissão.

            “Um mundo morto, suspira a morte de felicidade, enquanto embarca para o norte da África.