Carta para os Anunnaki

 

Não, não venham. O planeta terra já não é um lugar alegre. A morte já não tem nenhum escrúpulo. Atua em todas as horas do dia, em todos os lugares. As principais vítimas são crianças, adolescentes, jovens negros, pobres.

Homens fogem em velhos navios lacrados, como se fossem caixões levando condenados por doenças infecciosas, e morrem. Morrem de sede e de fome, morrem batendo nas velhas portas dos navios podres, em fronteiras que nunca se abrem.

Morreu Aruna Shanbaug. Não sabm quem é? Eu também só sei dela pelas notícias frias, encapsuladas naquele modelinho técnico: Quem diz o que, a quem, com que efeito. Só sei dela por via do informe da BBC, mas a sua morte dói em mim como uma velha espinha de peixe, lacerando minha garganta.

Aruna Shanbaug viveu 42 anos em coma. Doença genética? Acidente? Perguntarão vocês. Sim, digo eu. Foi um acidente terrível. Aruna Shanbaug foi estuprada no próprio hospital onde trabalhava como enfermeira. O ato foi tão violento que Aruna Shanbaug virou vegetal. Vegetal? Que coisa idiota de se escrever. Aruna Shanbaug deixou de ser aquela pessoa alegre, andando com seus próprios pés, respirando o ar matinal e dormindo à noite sob a colcha dos seus sonhos.

Mulheres não valem mais nada no planeta terra. São estupradas, atiradas em rios, matas, banhadas em ácido e atiradas em agonia em fossas cavadas nos quintais.

Me perguntam sobre flores brotando à beira do asfalto? Isso só vive no poema de Drummond.

O planeta revolta-se em tufões, tempestades, estrondosos tremores. Esconde sua pouca água e assiste ao rio de larva dos sentimentos humanos, de egoísmo, cinismo, arrogância, inércia, leniência,medo, orgulho, tudo em franca derrocada rumo à barbárie.

O planeta fez sua escolha. O Deus daqui é o capital, com sua pequena corte de seguidores. Os livros de fé foram atirados ao mar morto, há somente a crença no lucro e é para ele que se estende e se afofa o berçário das especulações, num pequeno círculo editado, á margem do qual a humanidade perece.

A casa do futuro está sendo preparada. Ela é inteligente, abriga os ecos do progresso, mas já não precisará de habitantes. Autônoma, ela inventa todos os dias uma vida para si mesma, e para as suas máquinas fascinantes.

E a política, perguntarão vocês? Espero o gigantesco delay para dar-lhes uma resposta plausível. E digo, medindo as palavras: A política veste-se de gala, para assistir ao seu próprio velório.

Não venham. Não gastem seus preciosos anos luz para essa visita. O planeta terra, que vocês veem como um pálido ponto azul, belo e distante, espreme com mão vigorosa e atira ao léu, sua própria vida.

Cardápios em Braille, Araras Azuis e Tolices

Queridos amigos, a propósito dos protestos contra os cardápios em braille, e mais ainda, por conta de mensagens das quais tenho tomado conhecimento com respeito ao uso do braille, gostaria de compartilhar com vocês um pouco do que penso sobre essas questões. Parafraseando um querido amigo, ouso dizer: O braille não precisa dos cegos, os cegos é que precisam do braille. Assisto a uma contenda sistemática e tola com respeito aos cardápios braille. Gasto de energia e de falação que em vez de nos fortalecer, de valorizar nosso campo de pertença e a nossa cultura tátil, nos desune e passa uma mensagem incompreensível a respeito do que queremos para a sociedade.

Por que jogamos pedras nos cardápios em braille? Por que desqualificamos uma lei, somente porque ela não resolve uma problemática maior, que é a de colocar livros braille na escola, em tempo hábil e com qualidade? Quando o universo foi criado, será que os planetas só começaram a girar em suas órbitas quando cada um deles estava plenamente constituído? Será que todas as raças humanas só começaram a fazer uso da linguagem quando não houve mais nenhum ser humano incapaz de fazer uso do seu aparelho fonador?

Não acho a lei do cardápio em braille inútil e desnecessária, tampouco a lei que obrigou que as empresas aéreas distribuíssem o conteúdo de seus cartões de segurança também em braille. Alega-se que somente uma pequena minoria fará uso de tais cardápios. Em que pesquisa baseia-se tal informação? Não será ela fruto do próprio preconceito daqueles que não fazem uso do braille, e que, ainda que estejam exercendo seu direito de escolha, não têm o direito de desqualificar o direito de uso dos que preferem o braille? E se de fato for mesmo uma pequena minoria que prefira cardápios em braille, numa sociedade democrática, essa pequena minoria não pode ser contemplada?

Quantas araras azuis existem ainda no planeta terra? Quantos ursos panda? São de fato uma pequena minoria. Mesmo assim, há muita gente preocupada com a preservação dessas aves, porque elas fazem parte de um grande ecossistema natural que não deve ser flagrantemente desfalcado, como está sendo, sob pena de termos consequências imprevisíveis para a conservação da nossa fauna.

A escrita braille já não é somente uma conquista das pessoas cegas. A escrita braille é um legado da cultura humana. Um modo de tradução do alfabeto convencional em uma interface e uma gramática tátil de associação. Não houvesse o paradigma tecnológico compreendido a importância desse legado, e nós ainda estaríamos produzindo braille em regletes de madeira, metal ou plástico, com dispêndio de energia muscular e esforço mental.

Felizmente a revolução tecnológica incorporou o braille. As indústrias de microeletrônica, mecatrônica e afins, sempre trazem à luz, um invento que repotencializa o uso do braille na leitura e na escrita. Um exemplo são as modernas linhas braille, hoje acopláveis aos smartphones e aos tablets. E, a mais recente descoberta, a impressora Braigo, criada por um jovem de 13 anos que em sua genialidade, deu-se conta da importância do braille.

Enquanto ouço colegas cegos desqualificarem o braille e ironizarem com respeito à paixão dos seus defensores, assisto aos progressos do sistema de seis pontos nas telas do ios e do androide. Como se, enquanto o braille avança a passos largos, tendo seu reconhecimento nos processos tecnológicos de ponta, no âmago da cultura cega, ainda se desse voz a um velho debate, nascido no século XIX, o qual punha de um lado os defensores do braille, e do outro, aqueles que eram contrários à sua implementação.

Usar ou não usar braille, na sociedade atual, já é uma questão de escolha, de adaptação, de necessidade. Pensar que os computadores substituem a leitura tátil, é como tentar-se substituir o pó do café por farinha de milho.

Brincadeiras à parte, leitura tátil e leitura de ouvido, por via da voz sintética do computador, são escolhas possíveis na sociedade atual. Cada uma delas traz vantagens e desvantagens. Cada uma delas tem sua leva de usuários, cada uma delas cria níveis de satisfação ou de insatisfação. Assim, porque jogar pedras na lei do cardápio braille, quando certamente há pessoas cegas que se sentirão extremamente confortáveis se chegarem a um restaurante típico de frutos do mar, por exemplo, e receberem um cardápio para lerem calmamente e fazerem seu pedido com autonomia?

O que se deve lamentar, não é a existência da lei. O que se deve lamentar, é que ainda sejam necessárias leis, para que uma pessoa cega possa sentar-se calmamente em um restaurante e possa ler em braille a carta dos vinhos ou o menu das entradas.

O que se deve lamentar, mais ainda, é essa contenda antiga e desnecessária, levada a cabo por pessoas cegas não usuárias do braille, e que portanto não podem compreender a paixão, o encantamento, a defesa ardorosa daqueles que lêem em braille.

Defendo o braille. Defendo a célula de seis pontos, como se fosse ela a arara azul no ecossistema da escrita humana. Defendo o braille, com seus pequenos desenhos minimalistas, lembrando peixes, ou um bordado feito de pequenos sulcos. É assim que eu escrevo. É assim que sou no mundo, ser de escrita e de leitura, tocando o texto com a polpa dos meus dedos.

O Homem que me Fez

Todo dia 1 de maio eu escrevo. Com as mãos, com os olhos, com o corpo todo embebido da saudade dele. Como se estivesse brincando com legos, procuro na memória pedaços da sua vida, refaço trilhas, conversas, silêncios, sofro de novo com as suas crises asmáticas, sorrio com o mundo fantasmático que ele despejava nos causos que contava.

Toda vez me surpreende a força e a meiguice com as quais ele fora tecido. Nasceu a 1 de maio de 1915, num mundo ainda assombrado com o pós-guerra, num pedaço de nordeste crestado de sol, Riacho Fundo, onde água era produto de luxo.

Ali o futuro dos homens estava cinzelado em poucas letras de pedra. Ser pobre, ser honesto, trabalhar, de sol a sol, nas terras dos latifundiários, que apadrinhavam seus filhos, apertavam suas mãos calosas, fiavam suas compras na feira de quarta-feira e ficavam com quase todo o seu lucro que saísse da terra.

Hoje me veio uma lembrança da infância. Estávamos nos anos sessenta. Localização, Angico Torto, um sítio perdido no município de Itapetim, alto sertão de Pernambuco. Um dia ele chegou em casa cansado da asma, a ira nos olhos, brigando pelo ar, gritando contra a injustiça. Apanhei a história aos bocados, com minhas mãos de menina pequena. Minha mãe se negara a votar no cabresto do fazendeiro, Joaquim Paulino da Silva.

O homem rico, dono do gado, dono da fazenda, veio a cavalo, interrompeu meu pai, na faina de fazer suas cercas. Pediu a casa de taipa. Pediu a terra. Engoliu de um sorvo irado, anos e anos de trabalho duro, de servidão, de valentia, de horas de conversas amenas, latifundiário e meieiro preparando juntos a terra para a plantação do milho.

A ventania no sertão é como um pássaro grande, batendo portas, retorcendo arbustos ressequidos, atirando para longe a poeira escura. Foi como um redemoinho, a ira de Joaquim, atirando meu pai com seus filhos, sua mulher e o voto insubordinado para longe da pequena casa agora vazia das suas crianças.

A vida do meu pai encerrou-se em 15 de maio de 1993. Oito dias antes, meu irmão, na uti do hospital, cantou-lhe um aboio, enquanto eu, perdida em lágrimas, segurava sua mão calosa e inerte.

Todo dia 1 de maio eu escrevo, tentando aplacar um pouco a saudade dele. Em vão, as palavras chegam, tisnadas de assombro, porque sentem que não são senão, uma quilha inútil, um vão que jamais abrirá novamente o caminho por onde eu possa correr, abrir porteiras, derrubar cercas, chegar de novo perto do meu pai.