Jornalista Desde Sempre

 

Não foi uma pergunta, sequer uma pauta, preparada com antecedência, ou rabiscada às pressas no verso de um envelope usado.  Não foi nem mesmo um lead. Se quisermos dizer assim, foi uma sentença curta, sem apelação. Um aneurisma retirou Geneton morais Neto do convívio do jornalismo brasileiro, e amanhã, dia 29, enquanto a política revolve as cinzas da democracia, será celebrada sua missa de sétimo dia, onde já sinto, com muita pena, a falta da sua devoção à nossa senhora do eterno espanto.

Não se pode dizer que a sua carreira foi curta. Pode-se quando muito, afirmar que ele saiu cedo da vida. Saiu cedo, mas aproveitou cada minuto da sua vocação de jornalista, para pensar, ficar em silêncio, indagar, como se no arranjo bem articulado das suas perguntas, houvesse pinças muito finas a segurar as notícias.

Nas suas mãos, aliás, notícia era coisa rara, muito para além do “quem, diz o quê, a quem, com que efeito”.  As suas notícias tinham um ângulo próprio, original, nascidas que    eram, do artesanato de juntar entusiasmo, curiosidade e atenção concentrada no fazer profissional.

É assim que digo, foi uma carreira longa, rica, densa, onde escreveu livros, dossiês, realizou documentários, produziu crítica jornalística, editou para tevê e para rádio. Esculpiu para a história, narrativas magistrais, em páginas e páginas de memória jornalística.

Quando se vai um jornalista desse quilate, num momento tão difícil da imprensa brasileira, quando se juntam mãos em prece e se cantam os hinos da despedida, há que se ter paciência para se suportar o nó na garganta, o soco na boca do estômago, o desânimo a esfriar as mãos.

Há que se ter coragem para mirar a galeria dos que ficaram, a grande leva dos congratuladores, dos bajuladores, dos farsantes, dos vaidosos, a engrossarem as fileiras dos especialistas que nunca alcançaram o diploma da ética, que nunca seguraram a bandeira de defesa da democracia e da justiça social.

Costumo dizer aos meus alunos, que há três tipos de jornalistas. Os que já nasceram, os que se tornam e os que nunca o serão. Geneton Morais Neto já nasceu jornalista. Veio para mergulhar fundo no ofício, veio para iluminar os acontecimentos e nos ensinar que a surpresa, a curiosidade, o espanto, a ética, são os ingredientes próprios da vida jornalística.

Há os que chegam à carreira munidos de tais artefatos, qualificando sobremaneira a prática profissional. Geneton era um deles, por isso o seu legado será para sempre reverenciado.

Fecham-se os livros de oração, cerram-se as cortinas. Numa tarde silenciosa e sombria, prossegue a contagem da espera de que um jornalista novo possa abrandar o vazio e o luto.

O Vigia das Horas

O tempo caminha no seu passo de sempre, recebendo os segundos, os minutos, as horas, na colhedeira dos dias. A mídia, os comentadores, os políticos, em alguma medida, tentam apressar o recolher das horas, à espera de que chegue a segunda-feira, 29 de agosto, e assim seja consumado o terrível plano de impedimento da presidenta Dilma Rousseff.

De fato, a segunda-feira já chegou, nas especulações, nas narrativas, nas predições e profecias. Como a presença de Lula vai interferir na situação da presidenta?  Indaga uma jornalista ciosa do seu dever, articular e desenvolver as táticas de rejeição ao governo afastado, sempre com um sorriso no rosto.

Haverá um peso negativo terrível, apressa-se em responder um comentarista. Lula e sua esposa indiciados pela polícia federal, levarão a Lava Jato para dentro desse último dia do processo de impeachment.

Seria de ingenuidade, de cinismo, ou de malcaratismo  essa frase articulada de maneira quase coloquial, e difundida nos microfones da Globo News?

Indiferentes à uma opinião formada no contraditório, difundido nas redes sociais, os comentadores de mídia prosseguem na sua louvação à necessidade do impeachment, cumprindo com bravura e fidelidade canina, a pauta editorial que lhes é imposta pelos empresários de comunicações do país.

Às perguntas dos jornalistas, que não fazem mais do que anunciar o seu lado, a sua posição, a defesa da sua linha editorial, nuvens de críticas e respostas contraditórias eclodem nas redes sociais.

A Lava Jato sempre esteve dentro do processo de impeachment. Pelo menos quarenta senadores são citados na operação, não fossem as blindagens do judiciário, da mídia e do Supremo.

Um dos maiores operadores dos esquemas de corrupção, que tem juntado, ao longo dos séculos, a política e os empresários, o deputado Eduardo Cunha, ele próprio ainda mantém seu mandato, e age nas sombras, costurando e chuleando essa terrível tecedura do impeachment.

E qual será a influência da imprensa nesse último dia de impedimento? Estouram perguntas do gênero nas redes sociais. Como se portariam os senadores, não houvesse ali a presença das câmeras, dos âncoras, dos jornalistas internacionais, os documentaristas?

Porque é certo que a mídia, com seu poder de monopólio, é o grande braço publicitário do plano de impedimento. Jornalismo como o da Globo News, repetindo diuturnamente os mantras do processo, presta um serviço indispensável para que se obtenha o resultado já apregoado nas suas manchetes: Sessenta, sessenta e um votos a favor do afastamento definitivo da presidenta.

A mídia é o grande vigia dessas horas, do minuto em que cada senador depositará sua máxima nos microfones, quando uma máquina registradora invisível fará a contagem e vibrará, ruidosa ou silenciosamente, em selfs, em cliques, em vinhetas.

Pergunto-me o que farão os jornalistas da Globo News, quando cessar a necessidade do ódio e da rejeição. O que farão eles que nesses últimos anos, somente trabalharam com a plataforma do ódio, do cinismo e da desfaçatez?

Por agora não há como pensar sobre isso. A mídia está plenamente ocupada na vigilância das horas, dos votos, do final feliz para a sua fábula insensata.

!Agosto das Letras”

Eu não era propriamente uma criança alegre. Tinha muita energia guardada, e, uma timidez absurda, o que as vezes me fazia ficar paralisada. Havia poucas coisas que me deixavam completamente em paz, feliz, entregue. Uma dessas coisas eram os livros.

Livros, na minha infância, eram sinônimos para grandes maços de papéis encadernados em capas muito duras, folhas completamente crivadas de sulcos, sulcos que eu percorria com minhas mãos pequenas, as palavras fazendo sentido na polpa dos meus dedos indicadores.

Com o tempo aprendi a identificar em mim mesma uma espécie de fome, suave, funda, inadiável. Era fome de leitura.

A frase que mais se ouvia em torno de mim, dita pelos adultos, era: Essa menina é magra de tanto ler!

Lia muito mesmo. Por dias inteiros eu me deslocava por entre as palavras, abria páginas e páginas, crivadas daqueles sulcos mágicos, e voava por mundos surpreendentes, absurdos e trágicos: De Monteiro Lobato, de José de Alencar, de escritores franceses de literatura infantil, dos clássicos da literatura universal.

De tanto ler, imaginava as vezes que de fato eu habitava o mundo literário, com suas sombras, suas quilhas de vento, suas portas entreabertas, o terror apontando-me seus dedos fantasmagóricos. Imaginava que morava naquele mundo e que estava de passagem na vida real.

O gesto da leitura, com seu conjunto de comportamentos, o silêncio, a contemplação, a associação e o encadeamento das ideias, o gesto da leitura, parece que nos oferta um passaporte para o conhecimento profundo, para um naco de humanidade que nos pertence, mas nem sempre é reconhecido por nós próprios, quando nos é negada essa possibilidade.|

Ler em braille, em tinta ou nos tablets Ler através do kindle. Nenhum suporte pode alterar essa nossa condição de ser, sujeito de leitura, entregue ao desafio de caminhar por entre as ideias, conhecer não apenas suas fontes, times, verdana, garamond, mas sentir nelas mesmas, o hálito da compreensão, do entendimento, da partilha, da comunicação.

Ler é como dar voz ao passado, ao futuro, ao tempo presente. É como abrir nossa mente, como uma casa, para abrigar ideias e dar-lhes vida, estatura, outra explicação.

Agosto chega com seus dias longos, seu lençol de frio, suas ventanias. Agosto chega com as suas letras, em tinta, em bits, em braille.

A Invenção do Futuro

Por esses dias comecei a ler “Vozes de Tchernobil”, da prêmio nobel de Literatura Svetlana aleksiévitch. O livro é como um soco na boca do estômago, e exala a angústia profunda daqueles que foram despatriados sem qualquer aviso, sem preparação, à força de uma explosão.

Leio, e penso no mundo para o qual estamos sendo solapados, um mundo bizarro onde a madrugada empresta seu silêncio e seu lençol de frio para a arte das facas, a explorar a vida dos mais vulneráveis, um mundo onde a festa se desfaz sob a virulência da morte, em seus múltiplos tons de cinza.

Devoro as páginas do livro, tisnadas de tristeza, mas penso sobretudo no meu país, e me vem à mente, com toda a força de uma erosão, a ideia de que também instalou-se aqui uma espécie de Tchernobil, não a partir de uma explosão, mas do modo como Svetlana Aleksiévitch nos descreve, um mal estar, uma sensação de caminharmos para um lugar que ainda não conhecemos, um salto para o que ainda não existe, o desfazimento de um solo de pertencimento, de um conjunto de crenças, nossas mãos vazias, esticadas para o abismo.

Ocupamos uma passarela estreita e desfilamos ao ritmo dos festejos olímpicos, salpicados dos gritos de protesto e do medo insidioso que a todos aflige, um medo daquele que anda a seu lado, com seu casaco esquisito, sua falha dentária, sua inapetência para o sorriso de facebook.

Passo a passo, como se numa segunda tela, assistimos à nossa própria derrocada, enquanto os políticos, os banqueiros, a justiça de plantão, inventam frases de efeito para a fábula midiática a ecoar diuturnamente os presságios envernizados da mentira e da invenção do futuro.

O futuro é o passado reformado. Reforma da previdência, da educação pública, da saúde, do desenvolvimento urbano, da distribuição da água e da energia, da exploração do petróleo, soba cúpula de um estado mínimo, anêmico e cartorial, assinando decretos e medidas provisórias com sua caneta Montblanc.

O futuro inventado, sob a capa do cinismo mal disfarçado da política, acentua as estratégias de evacuação dos mais pobres, de assassinato a sangue frio, dos negros, dos índios, dos homossexuais.

Passo a passo, saltamos para esse lugar estranho, passo a passo, nos apropriamos do nosso próprio Tchernobil.

 

Este post será publicado amanhã, em minha coluna impressa do Jornal A União.